*O Globo
Atendente de uma cafeteria no Plaza Shopping, em Niterói, Vitórya Melissa Mota, de 22 anos, não se cansava de chamar a mãe, a dona de casa Márcia Maria Mota, de 53, para tomar um cappuccino com uma fatia de bolo no trabalho. Depois de três anos, Márcia decidiu visitá-la de surpresa, em 2 de junho. O encontro com a filha acabou não acontecendo. A gerente da loja de café a sentou na cadeira e deu a notícia: Vitórya havia sido esfaqueada por um homem. Nesta segunda-feira (2), exatos dois meses após o feminicídio sofrido pela jovem, haverá a primeira audiência do caso, na 3ª Vara Criminal do Fórum de Niterói. O réu, Matheus dos Santos da Silva, de 21 anos, era colega de Vitórya no curso de Auxiliar de Enfermagem, e teria matado a estudante devido a um “amor não correspondido”.
O crime é um dos 38 casos de feminicídio que chegaram entre janeiro e junho deste ano no Tribunal de Justiça do Rio (TJ-RJ). Em todo o ano passado, foram 70 ações abertas para esse delito. Os dados, resultado de um levantamento do TJ-RJ feito para O GLOBO, mostram uma situação ainda mais grave em relação à violência sexual contra a mulher (que reúne, entre outros, os casos de estupro e assédio): o número de processos abertos até o meio deste ano já supera o de 2020 inteiro e pode, até dezembro, ultrapassar o de 2019, o ano com mais processos abertos desde 2013. Ao todo, tramitam na Justiça fluminense 125.915 casos de violência doméstica. No próximo dia 7, a Lei Maria da Penha, criada para coibir crimes como esses, completa 15 anos. Veja aqui gráficos do raio-x da violência doméstica.
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Ritmo acelerado
Outra categoria que ultrapassou o número de casos de 2020 foi o da violência moral, que envolve os crimes de injúria, calúnia e difamação contra mulheres. No ano passado, foram 552 processos abertos. No primeiro semestre de 2021, começaram a tramitar 565 ações desse tipo.
Juíza do 6º Juizado da Leopoldina, Katerine Jatahy julga, diariamente, histórias de violência doméstica. A região do fórum abrange os complexos do Alemão e da Maré e recebe 550 novos processos desse tipo mensalmente. Ela afirma que o crescimento no número de ações tem conexão com o período da pandemia e isolamento social, em que as mulheres ficaram mais expostas à violência de maridos e companheiros agressores.
“Na pandemia, vem crescendo muito o número de casos e, além disso, 100% dos processos dos juizados eram físicos. Agora, com a prioridade na digitalização e mutirão, a tendência é acelerar nos julgamentos. É um olhar diferenciado do tribunal para os casos de violência doméstica. As mulheres da periferia tem uma dificuldade maior para romper o ciclo da violência, porque está mais arraigado na cultura da região e muitas dependem do companheiro”, diz a magistrada.
Para fugir do Tribunal do Júri, embora nem todos os pedidos sejam da defesa, vêm surgindo solicitações de laudos de insanidade mental dos acusados. No último semestre, houve pedidos em seis feminicídios. O de Matheus foi um deles. Mas a juíza da 3ª Vara Criminal de Niterói, Nearis dos Santos Carvalho Arce, não autorizou o exame. Num trecho da decisão, fundamenta que “não há nos autos qualquer indício de que o réu seja acometido de distúrbio psiquiátrico”. Desde janeiro de 2019, 103 acusados de violência contra a mulher entraram com os chamados incidentes de insanidade mental.
A decisão da magistrada foi recebida com alívio pela mãe de Vitórya. “Como ele é doente? Se ele tivesse algum problema mental não estaria fazendo um curso de enfermagem, no qual teria que lidar com vidas. Quero justiça!”
Márcia Maria Mota ainda não conseguiu superar o trauma. Passa a maior parte do dia com o celular de Vitórya nas mãos, assistindo a vídeos e vendo fotos da jovem.