AMB | 02 de outubro de 2020 13:45

Revista Fórum: Violência porta adentro

Registros das PMs em todo o Brasil apontam que 55 mulheres foram salvas pela Campanha Sinal Vermelho | Foto: Divulgação/ AMB

Cresce o número de agressões durante o isolamento, e Justiça responde com mais proteção às vítimas

por Evelyn Soares

A. Decidiu trocar a foto de perfil no whatsapp: colocou um “x” vermelho. O que poderia ser interpretado como apoio à Campanha Sinal Vermelho contra a Violência Doméstica foi recebido como um silente pedido de ajuda por uma prima. O contato por mensagem revelou a violência sofrida e, em poucos minutos, a Patrulha Maria da Penha, da PM-RJ (Polícia Militar do Rio de Janeiro), prendeu o agressor.

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Esta foi a primeira ocorrência registrada pela Campanha Sinal Vermelho no Estado do Rio. O caso ocorrido em Itaboraí, município na Região Metropolitana, chegou à 2ª Vara Criminal local, que tem como titular a juíza Juliana Cardoso, diretora de Acompanhamento das Políticas de Atendimento à Mulher e das Varas de Violência Doméstica da AMAERJ.

A história foi contada no webinar “Discutindo a violência contra a mulher”, promovido pela AMAERJ em 2 de setembro. Juliana abriu sua participação reafirmando que “a violência contra a mulher é um verdadeiro flagelo”.

“Essa questão da pandemia trouxe à luz que, de fato, a mulher tem dificuldade em acessar o sistema de Justiça, e a Campanha Sinal Vermelho veio em boa hora. Pensada de forma humanizada, ampliando a rede de enfrentamento para as farmácias.”

A interrupção da violência contra A. foi um dos 51 chamados da Sinal Vermelho em todo o país. O baixo número de registros se deve à forma como as Polícias Militares recebem os pedidos de ajuda, como explicou a procuradora Maria Cristiana Ziouva na live da AMAERJ.

“A ligação de uma farmácia, em razão da campanha, cai no número geral. Então, quando pedimos os resultados das farmácias, a PM não tinha como dar os números exatos. Temos 43 atendimentos identificados, feitos pelas farmácias, e oito chamados pela internet, pelas redes sociais. Considero isso muito bom. Temos conosco a certeza de que foram muito mais atendimentos que apenas estes”, disse a conselheira do CNJ (Conselho Nacional de Justiça) e procuradora da República.

Segundo Maria Cristiana, os dados coletados apontam que 55 mulheres foram salvas. “As farmácias estavam comprometidas, pois tinham certeza que salvariam vidas. Ainda que uma única mulher fosse salva, valeria a pena”, relatou.

NÚMEROS SÃO HISTÓRIAS

São vidas como a de A., marcadas pela violência, que estão por trás dos continuamente alarmantes números de violência doméstica. O TJ-RJ (Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro) informou que o total de prisões em flagrante convertidas em preventivas nos últimos dois meses mais que dobrou. Foram 155 detenções em agosto contra 74 em julho. Em 2020, já são 874 registros.

O ISP (Instituto de Segurança Pública) apresentou, em setembro, levantamento do Monitor da Violência Doméstica e Familiar contra a Mulher no Isolamento Social. Os dados foram coletados entre 13 de março, a partir da decretação da quarentena no Estado Rio, e 31 de agosto.

Os crimes enquadrados na Lei Maria da Penha apresentaram queda de 30% em comparação com o mesmo período de Em agosto, foram registradas três vítimas de feminicídio (contra seis em agosto de 2019) e 17 vítimas de tentativas (contra 34 em agosto de 2019).

Ao mesmo tempo, o isolamento social propiciou o aumento na proporção de crimes ocorridos no lar. Neste período, 67,1% dos crimes de violência sexual (58,3% em 2019) e 66% dos de violência física (60,2% em 2019) aconteceram dentro de casa.

Uma segunda pesquisa do ISP focou nas denúncias ocorridas nos primeiros meses de quarentena no Rio de Janeiro. Entre 13 de março e 30 de abril, a Central 190 recebeu 13.065 ligações sobe crimes contra mulheres – média de 266 denúncias por dia. Em relação ao mesmo período do ano passado, houve aumento de 12%. A pesquisa aponta ainda uma tendência já trazida pela Justiça: mesmo com o maior volume de denúncias, caíram os registros de ocorrências.

Prefeito de Niterói, Rodrigo Neves (esq.), juíza Juliana Cardoso (centro) e autoridades na inauguração de nova Sala Lilás | Foto: Evelyn Soares

PROTEÇÃO NO JUDICIÁRIO

A Justiça continua seus esforços para proteger as vítimas de violência. Depois da inauguração da Sala Lilás em Petrópolis (Região Serrana), chegou a vez de Niterói receber o projeto. A quarta sala no Estado do Rio foi a segunda inaugurada durante a pandemia do coronavírus. O espaço resulta de uma parceria entre as Prefeituras de Maricá e Niterói, o Tribunal de Justiça fluminense e a Secretaria Estadual de Polícia Civil.

Na cerimônia, em 14 de agosto, o prefeito Rodrigo Neves (PDT) falou sobre o acolhimento que o espaço trará às vítimas. “Não tenho dúvidas que a inauguração da Sala Lilás será um marco nesse esforço de superação da situação de violência contra a mulher. Neste equipamento, teremos a possibilidade de um acolhimento muito mais humano e amoroso para mulheres e crianças”, disse.

A magistrada Juliana Cardoso representou o Tribunal de Justiça e a Coem (Coordenadoria Estadual da Mulher em Situação de Violência Doméstica e Familiar). Segundo ela, o tratamento dado à vítima nesses espaços, com atendimento especializado em um momento de vulnerabilidade, “faz diferença para o Judiciário, em especial porque a colheita da prova feita de forma ampla, técnica, humanizada, auxiliará o magistrado quando da prolação da sentença”.

A Sala Lilás já conta com unidades em Campo Grande (Zona Oeste do Rio), no Centro da capital fluminense e em Petrópolis.

MENINAS EM PERIGO

O Dossiê Mulher 2020, divulgado no fim de agosto pelo ISP (Instituto de Segurança Pública), mostra o risco de violência sexual que crianças e adolescentes do sexo feminino correm com conhecidos, dentro de suas casas. Em 2019, o Estado do Rio registrou o total de 6.692 casos de violência sexual.

A maioria das tentativas de estupro (91,8%) e de estupro (86%) foi cometida contra mulheres. A cada dez vítimas de estupro, sete tinham até 17 anos.

Grande percentual dos crimes contra crianças e jovens (58,9%) aconteceram dentro de casa. Meninas de até 14 anos representam 65,9% das sobreviventes de estupro no Estado. Mais de 44% dos crimes de estupro de vulnerável foram praticados por pessoas conhecidas, sendo pais e padrastos responsáveis por 18,5% dos registros.

14 ANOS DE UMA LEI POUCO CONHECIDA

Maria da Penha Maia Fernandes | Foto: Reprodução/Facebook

Em 7 de agosto de 2006, foi sancionada a Lei Maria da Penha. Uma das mais completas leis de proteção à mulher vítima de violência doméstica e familiar, a 11.340/06 nasceu graças ao engajamento de Maria da Penha Maia Fernandes.

Em 1983, a farmacêutica bioquímica sofreu duas tentativas de feminicídio, dentro de casa, pelo então marido. Na primeira, ao ser alvejada por um tiro na coluna, ficou paraplégica. Ao voltar para casa, após quatro meses de cuidados médicos, o homem a manteve em cárcere privado por duas semanas e tentou eletrocutá-la no banho.

Após a Comissão Interamericana de Direitos Humanos intervir no caso, a lei começou a ser moldada em 2002, até sua sanção, quatro anos depois. Mesmo com tanto tempo em vigor, ainda é pouco conhecida. No “Boletim Mulheres e seus Temas Emergentes”, dados do DataSenado de 2019 mostram que 11% das entrevistadas desconhecem a lei e 68% sabem pouco sobre ela.