Judiciário na Mídia Hoje | 30 de novembro de 2021 18:23

Sub-registro: Invisíveis no Brasil, sem documento e dignidade

*El País

Adriana, de 22 anos, procurou o ônibus da Justiça Itinerante para tentar fazer seu registro civil | Foto: Juan Martinez

Adriana tem 22 anos, mas ainda não nasceu. Não oficialmente. A jovem carioca, negra, magra, com postura de bailarina e sobrancelhas bem marcadas nunca teve uma certidão de nascimento. Tampouco um RG, carteira de trabalho, CPF ou qualquer outro documento. “Eu nem no mundo existo”, diz ela, com voz baixa, quase inaudível. Sem jamais ter conhecido sua progenitora, Adriana foi criada por Mônica, com quem seu pai passou a viver quando ela tinha cinco anos. Depois que o homem abandonou a família, foi a madrasta quem descobriu que a menina nunca teve um registro e iniciou uma odisseia que já dura anos para conseguir os papéis que atestem que Adriana, viva e de carne e osso, é uma cidadã brasileira. “A vida dela é parada, não pode fazer um curso, não pode ter um trabalho formal, não pode fazer nada”, diz Mônica, de 46 anos, com tom de revolta.

Adriana é uma das cerca de três milhões de pessoas no país que não possuem nenhum tipo de registro civil, como certidão de nascimento, de acordo com estimativa do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE). Em uma sociedade rasgada pela desigualdade social que se materializa na fome e na miséria nas ruas, a ausência de pedaços de papel que atestem um mínimo de dignidade não aparece com frequência no debate público, mas o assunto ganhou relevância ao aparecer como tema da redação do Exame Nacional do Ensino Médio (Enem), na prova do dia 21 de novembro. Sob a proposta “Invisibilidade e registro civil: garantia de acesso à cidadania no Brasil”, aqueles que prestaram o exame foram provocados a escrever sobre o assunto.

Sem um RG e um CPF, um brasileiro não consegue se matricular numa escola, não tem acesso a benefícios sociais do Governo, não pode ir ao sistema público de saúde fazer consultas. Como diz o título da redação do Enem, um indocumentado não é cidadão, não pode aspirar a evoluir na vida.

Adriana conseguiu estudar e concluir o Ensino Médio graças à insistência de Mônica, que convenceu uma escola particular, “mas barata”, no bairro periférico onde moram a matriculá-la. “E dei sorte de que ela foi uma criança saudável, nunca precisou ir no médico, porque senão não sei como teríamos feito”, conta a mulher. Este ano, no entanto, a jovem teve que contar com a intervenção de uma assistente social para conseguir tomar as doses da vacina contra a covid-19. “Fomos em vários postos de saúde e nenhum queria vaciná-la porque ela não tem identidade”, diz Mônica.

Ambas conversaram com o EL PAÍS na última sexta-feira, no pátio da Vara da Infância, da Juventude e do Idoso, no Rio de Janeiro, em frente ao ônibus azul e branco do Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro estacionado no local, onde seis funcionários da Defensoria Pública, quatro assistentes sociais e três juízas atendem, das 9h às 15h, dezenas de pessoas que vão em busca de um documento que comprove sua existência. Adriana e Mônica, que quer adotá-la e dar à jovem seu sobrenome, chegaram às seis da manhã em sua quarta ida ao local e, mais uma vez, saíram desanimadas. Como elas não têm nenhum documento dos pais biológicos da moça, a Justiça determinou uma busca pelo registro civil paterno para regularizar sua situação.

“Às vezes dá vontade de desistir, mas precisamos garantir os direitos dela”, confessa Mônica. “Eu fico muito confusa com isso, dá um desânimo grande”, diz Adriana, sempre cabisbaixa, quase sempre monossilábica. Ela desvia dos olhos de seus interlocutores. Tímida, mesmo quando aceita fazer um retrato para a reportagem, custa a mirar a câmera. Quando esboça um primeiro sorriso, institivamente fecha o olhos e se afasta do foco. A vergonha é um sentimento recorrente entre as pessoas indocumentadas, diz a juíza Raquel Chrispino, que há 15 anos trabalha com essa população e é coordenadora do programa de Erradicação do Sub-Registro do Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro. “A pessoa se sente culpada por não ter documentos, é como se ela fosse um ser humano de quinta categoria.” Chrispino, que apresentou na semana passada sua dissertação de mestrado sobre o tema, explica que, sem o registro civil, crianças e adultos têm dificuldade de acesso à educação e à saúde. Sem um número de CPF, que é porta de acesso aos benefícios sociais, foi impossível para esses brasileiros conseguirem, por exemplo, o auxílio emergencial oferecido pelo Governo durante a pandemia de covid-19. “Quem precisa não consegue nem remédios controlados oferecidos pelo SUS [Sistema Único de Saúde], o atendimento de saúde é sempre emergencial. Nesses anos todos, perdi a conta de quantas pessoas cegas eu atendi. Idosos com catarata que não conseguiram fazer a cirurgia por não ter registro”, conta a juíza, que tornou-se quase uma ativista contra o sub-registro, a proporção de pessoas sem certidão de nascimento.

Chrispino foi uma das principais fontes da jornalista Fernanda da Escóssia, que desde 2003 acompanha histórias de indocumentados e é autora do livro Invisíveis: uma etnografia sobe brasileiros sem documentos (Ed. FGV), citado como um dos textos de apoio na redação do Enem. Durante três anos, ela acompanhou as jornadas no ônibus do pátio da Praça Onze de Junho e contou vivências de pessoas que não conseguiram realizar cirurgias para tratar câncer ou cujas famílias têm até três gerações de indivíduos sem registro civil. “Muitas delas me diziam que se sentiam como cachorros, falam de si como não pessoas, porque quem não tem documentos está excluído do mundo dos direitos”, diz.

Durante sua pesquisa —o livro é uma adaptação de sua tese de doutorado—, Escóssia entendeu que a exclusão documental brasileira tem causas estruturais, que começam na falta de integração dos sistemas burocráticos, como os cartórios, que realizam as certidões de nascimento, e as secretarias estaduais de Segurança Pública, responsáveis pelo RG e CPF. Outras causas são o abandono paterno, quase endêmico no país, racismo e machismo. “Conheci uma mulher que não foi registrada porque o pai disse que não tinha filha ‘muito preta’ e outra cujo progenitor só registrava os filhos homens, porque ‘mulher não precisa disso’”, relata.

Nos 20 anos em que trabalha com o tema, a jornalista viu o Brasil reduzir, de 20,3% (em 2002) para 2,1% (em 2019), o sub-registro de crianças, um número que, segundo estudos internacionais, é resultado, em parte, da implementação de programas de transferência de renda, como o Bolsa Família, que passaram a exigir que todos os beneficiários fossem documentados. Mas além além do problema de quem nunca foi registrado está a chamada segunda via inacessível, quando alguém perde a primeira via do documento, em uma enchente, incêndio doméstico ou mudança e tem que enfrentar uma barreira de obstáculos e custos monetários para conseguir uma nova.

É o caso de Antônio Gecínio de Lima, de 69 anos, que saiu de Natal (RN) aos 16, rumo ao Rio de Janeiro, “sem lenço e sem documento”. Na sexta-feira, sem saber se foi registrado na cidade em que nasceu, subiu ao ônibus pela primeira vez para saber como pode se aposentar. “Eu nunca estudei e sempre me virei para trabalhar, mas nunca tive nada [formal]. Nunca casei, mas tenho dois filhos que não podem ter meu nome no registro porque não tenho documento”, conta o homem de pele curtida pelo sol, cabelos ondulados que caem sobre os ombros e um bigode igualmente grisalho.

No começo de sua peregrinação por uma identidade burocrática, ele conta com a ajuda da amiga Paola dos Santos: “Ele vive em estado de total abandono, sozinho, e não pode ter nenhum benefício social.” Ambos saíram da audiência com a juíza com a solicitação de busca de registro civil nos cartórios de Natal e região metropolitana, o primeiro passo é descobrir se, em algum momento, o nascimento de Antônio teria sido registrado entre os anos de 1950 e 1954. Por trás da máscara que cobre seu rosto, ele sorri, esperançoso: “Tomara que dê certo!”

Luis Gustavo, que acredita ter 37 anos, vive uma situação mais complicada. Sabe que chegou ao Rio de Janeiro aos três anos, mas não tem certeza se nasceu em São Benedito, cidade do Ceará de onde seria sua família. Vivendo em situação de rua há sete meses, depois de ficar sem condições de pagar os abrigos onde geralmente dormia, ele procurou o serviço da Justiça Itinerante depois de ser abordado por um policial que, ao saber que não tinha documentos, deu-lhe o endereço da Praça Onze de Junho. “Um conhecido me ofereceu trabalho como entregador de água, mas, para trabalhar, preciso ter pelo menos uma identidade, né?”, diz, com olhar desanimado, diante da assistente social que o atende. A Prefeitura do Rio de Janeiro estima que há entre 8.000 e 10.000 pessoas vivendo nas ruas da cidade. “Um percentual grande delas diz que não sai das ruas porque não tem documento”, afirma Raquel Chrispino.

Assim como Adriana, Luis Gustavo carrega a vergonha dos que não se sentem gente de direito. Trajando uma calça jeans, chinelos e uma camisa da seleção brasileira, todos igualmente gastos, ele olha para o chão enquanto fala: “Eu não tenho vergonha de morar na rua, mas nunca conheci ninguém aqui porque é como se eu não fosse cidadão. Se eu não tenho nem um papel com meu nome, não tenho nada.”

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Soluções

As cerca de 35 pessoas que esperaram e foram atendidas na sexta-feira eram todas pardas ou negras (assim se identificaram perante as assistentes sociais) e, a julgar pelos trajes e por seus próprios relatos, todas “pobres ou muito pobres”, como escreve Fernanda da Escóssia em seu livro. A exclusão documental, afinal, reflete quase todos os aspectos da desigualdade social brasileira. Também são negros Rogério de Oliveira, eletricista de 54 anos, e seu filho Wiliam, de 27, que fizeram o ônibus chacoalhar ao subir para a audiência com uma das juízas. Era a primeira vez que estavam ali, porque Rogério descobriu que o rapaz jamais havia sido registrado. “Eu tive um relacionamento conturbado com a mãe dele, nos separamos, mas sempre fui presente. Como entreguei meus papéis para ela e ela disse que o menino tinha certidão [de nascimento], achei que estava tudo certo”, conta o pai. Depois de saber que o jovem “tinha se metido com coisas erradas”, Rogério quis que ele voltasse a estudar e trabalhar e, só então, descobriu que o filho não tinha documentos. “Nunca desconfiei porque eu sempre matriculei ele nas escolinhas particulares do bairro, dava o nome e pronto”, se justifica.

De acordo com a juíza Raquel Chrispino, situações como a de Wiliam e dos outros milhões de brasileiros indocumentados poderiam ser evitadas com a integração de políticas de documentação. “As secretarias de segurança pública dos Estados não se comunicam entre si nessa cadeia documental. Precisamos integrar as bases de dados e a oferta de serviço aos cidadãos, para combater a ‘síndrome do balcão’”, diz ela, referindo-se à peregrinação que muita gente faz a incontáveis balcões de serviços públicos para fazer seus registros civis, sempre ouvindo “não” até chegar ao local adequado.

“Ninguém acredita que essas pessoas existem, mas elas existem aos milhões. Das 42.000 pessoas privadas de liberdade no Rio de Janeiro, 3.000 não possuem identidade civil no Estado”, continua Chrispino, em tom de voz indignado, ao comentar sobre a população carcerária com a qual ela também trabalha diretamente.

Além da integração dos sistemas de registro (cartórios) e de identidade (feita pelos Estados através das secretarias de Segurança ou órgãos como o Detran – Departamento de Trânsito), Fernanda da Escóssia diz que é preciso fortaleceros comitês de combate ao sub-registro. “É preciso que a estrutura burocrática estatal seja menos insensível a esse problema. Escolas e centros de saúde, por exemplo, poderiam e deveriam atuar como polos de encaminhamento ativo dessas pessoas ao identificar a falta de documentação”, propõe. As especialistas concordam que, além de facilitar a vida dos brasileiros ao garantir-lhes o acesso a um direito básico, quiçá o primordial, essas medidas gerariam economia aos cofres públicos. “Infelizmente, o Estado Brasileiro não vê a questão como uma política estratégica”, lamenta Chrispino.

Enquanto a situação não muda, a jornada de Wiliam teve um início feliz. Ele saiu do ônibus direto para o cartório, em frente ao pátio da praça, onde segurou, pela primeira vez, sua certidão de nascimento. E é apenas o começo, pois, junto com papel, carregado como um tesouro, levava uma lista cuidadosamente escrita à mão com a sequência de outros sete documentos que finalmente pode obter, do RG à carteira de trabalho. “Estou feliz demais, é um alívio!”, disse. E nem toda a timidez do mundo foi capaz de esconder o semblante de euforia de quem se sente gente pela primeira vez.