O jornal “Monitor Mercantil” publicou nesta quinta-feira (9) o artigo “Notícias que chocam”, escrito pelo desembargador Wagner Cinelli, do Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro (TJ-RJ). O magistrado abordou a cultura da violência, o machismo e os casos recorrentes de feminicídio.
“É nossa obrigação combater essa fábrica de homens que odeiam mulheres e, para isso, precisamos desnaturalizar a violência histórica e, especialmente, a violência que nasce do machismo”, ressaltou.
Wagner Cinelli é autor do livro “Sobre ela: uma história de violência” e diretor do premiado curta-metragem de animação “Sobre Ela”.
Confira a íntegra do artigo:
Notícias que chocam
Não ficamos uma semana sem tomar conhecimento pela imprensa de algum caso chocante de agressão ou morte da mulher pelo atual ou ex-companheiro. Tem ácido no rosto, pulmão perfurado por chave de fenda, vítima espancada enquanto segura o bebê, assassinato de grávida e até cabeça separada do corpo e enterrada no quintal. A residência do casal costuma ser um dos palcos preferidos desses agressores, mas os crimes podem ocorrer em qualquer lugar, como praça pública, shopping center, dentro do carro e até na igreja.
A lei penal se tornou mais rígida, mas o rigor da lei parece não ter causado, ao menos ainda, o desejado desestímulo à prática desses delitos.
Seria a cultura machista na qual somos criados um fator para produzir homens misóginos? O psicoterapeuta Adam Jukes, autor de Why Men Hate Women, diz que sim. Segundo ele, o desenvolvimento de meninos e meninas é assimétrico. É que meninos precisam aprender como serem masculinos, e as meninas, não. E ser masculino, nesse aprendizado social, é ser forte, competitivo, ousado e até mesmo agressivo. É ser o oposto de sua mãe. É ser como seu pai ou a figura masculina a ocupar esse posto.
Outra característica da cultura é a violência. Como nossos vizinhos, somos um país que sofreu um processo de invasão, dominação e sucessão dos povos ameríndios pelos europeus. Custou a dizimação dos habitantes originais.
Tivemos também a escravidão, iniciada no século 16 com a implantação das Capitanias Hereditárias e, como aponta Laurentino Gomes, o Brasil foi a principal nação escravagista das Américas, recebendo 40% dos 12,5 milhões de africanos vítimas do tráfico negreiro.
Exterminando indígenas ou subjugando escravizados, estamos diante de processos que envolvem extrema violência, com pessoas sendo coisificadas, coagidas, maltratadas, torturadas e assassinadas. Ações violentas que ocorriam no cotidiano e aos olhos de todos. Ações violentas reputadas “legítimas”, pois estavam de acordo com a ordem jurídica então vigente.
Essa drástica realidade histórica tinha embutida uma lição para todos: o forte bate e o fraco apanha. Ou então: quem tem poder faz o que quiser, e quem não o tem se submete. Equação simples de tentativa de sobrevivência do despoderado.
A população indígena minguou, e a escravidão teve seu fim decretado em 1888, o que não é tanto tempo assim. Aquela violência física não está mais no ar que se respira, como as marcas do ferrete não estão mais nas peles dos desfavorecidos, mas ambas ficam indeléveis no inconsciente coletivo.
A realidade é complexa e multicausal, mas os pontos aqui trazidos podem contribuir para a compreensão dos motivos de tanta violência em nosso seio. Violência do maior contra o menor. Violência do homem contra a mulher.
As notícias não cessam, mas ao menos têm o poder de nos chocar. É nossa obrigação combater essa fábrica de homens que odeiam mulheres e, para isso, precisamos desnaturalizar a violência histórica e, especialmente, a violência que nasce do machismo. É a esperança de dias melhores e as manchetes de jornal certamente os refletirão.
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