Artigos de Magistrados | 01 de agosto de 2022 12:15

Em artigo, desembargador trata de segurança pública e violência de gênero

Desembargador do TJ-RJ Wagner Cinelli | Foto: Brunno Dantas/TJ-RJ

O site da revista Justiça & Cidadania publicou neste domingo (31) o artigo “Segurança pública e violência de gênero”, de autoria do desembargador Wagner Cinelli, do Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro (TJ-RJ).

“No âmbito da violência doméstica e familiar, pode-se afirmar que para cada feminicídio há uma infinidade de crimes contra a mulher, como ameaças, lesões corporais e crimes sexuais que sequer são reportados, engrossando a chamada cifra oculta, aquela que, embora exista, fica longe da vista e não aparece na estatística oficial. O desafio é incentivar esse contingente de vítimas invisíveis, que é a parte submersa do iceberg, a romper o silêncio e vir à tona”, escreveu.

Leia aqui a íntegra da revista. Fundada em 1999, a Justiça & Cidadania apresenta mensalmente artigos e reportagens sobre áreas do Direito.

Wagner Cinelli é autor dos livros “Sobre ela: uma história de violência” e “Metendo a Colher” e diretor do premiado curta-metragem de animação “Sobre Ela”. Confira o artigo:

Segurança pública e violência de gênero

Somos constantemente impactados por notícias sobre a criminalidade. São as inovações do crime organizado, a expansão territorial das milícias, os crimes executados com extrema crueldade e tantos outros delitos que nos trazem preocupação em relação à nossa segurança, de nossa família e de nossa comunidade, impelindo-nos, inclusive, a alterar nossos hábitos.

A segurança pública, de fato, tem centralidade em nossa vida social e exatamente por isso é tratada na Constituição Federal:

“Art. 144. A segurança pública, dever do Estado, direito e responsabilidade de todos, é exercida para a preservação da ordem pública e da incolumidade das pessoas e do patrimônio, através dos seguintes órgãos:

I – Polícia Federal;

II – Polícia Rodoviária Federal;

III – Polícia Ferroviária Federal;

IV – polícias civis;

V – polícias militares e corpos de bombeiros militares.

VI – polícias penais federal, estaduais e distrital.”

A legislação infraconstitucional mais relevante sobre o tema é a Lei nº 13.675/2018, que disciplina a organização e funcionamento dos órgãos responsáveis pela segurança pública, institui o Sistema Único de Segurança Pública e cria a Política Nacional de Segurança Pública e Defesa Social:

“Art. 1º Esta Lei institui o Sistema Único de Segurança Pública (Susp) e cria a Política Nacional de Segurança Pública e Defesa Social (PNSPDS), com a finalidade de preservação da ordem pública e da incolumidade das pessoas e do patrimônio, por meio de atuação conjunta, coordenada, sistêmica e integrada dos órgãos de segurança pública e defesa social da União, dos estados, do Distrito Federal e dos municípios, em articulação com a sociedade.”

O artigo seguinte da Lei reafirma o dever do Estado e a responsabilidade de todos: “Art. 2º A segurança pública é dever do Estado e responsabilidade de todos, compreendendo a União, os estados, o Distrito Federal e os munícipios, no âmbito das competências e atribuições legais de cada um”.

A Constituição e as leis dão o norte, mas muitas vezes há um hiato entre o direito escrito e sua realização. Por isso, o debate é fundamental, assim como também o são – e dele decorrem – as cobranças que a sociedade faz aos governantes.

Políticas públicas são importantes para a consecução de objetivos dessa natureza e, para que sejam bem estruturadas, deve-se trabalhar com o máximo de informações em termos de quantidade e de qualidade. Daí o papel dos estudos, merecendo destaque o Anuário Brasileiro de Segurança Pública, publicado pelo Fórum Brasileiro de Segurança Pública desde 2007 e que traz dados colhidos perante as secretarias de segurança pública estaduais, as polícias e outras fontes, compilando-as e fornecendo uma fotografia da segurança pública brasileira. Trata-se de instrumento indispensável, com o potencial de contribuir para o debate e o desenvolvimento de políticas públicas a respeito do tema da segurança.

Todavia, por mais acuradas que sejam, as pesquisas que envolvem estatística criminal se deparam com um fator que representa dificuldade metodológica, que é a taxa de subnotificação decorrente de a vítima não noticiar à autoridade o delito sofrido. Essa omissão do sujeito passivo é fato sabido e, inclusive, alertado no Anuário.

Essa taxa de sub-registro, a depender do crime, pode variar bastante. Na hipótese de subtração de veículo, por exemplo, o lesado raramente deixa de formalizar a ocorrência, seja para receber a indenização securitária, se tiver apólice de seguro, seja para prevenir responsabilidades. O homicídio, como destacado no Anuário, é outra infração penal bastante notificada e tal se dá em razão de sua gravidade e também porque é delito não transeunte, ou seja, que deixa vestígios, no caso, o cadáver.

Entretanto, há infrações penais em que a subnotificação é alta. A esse respeito, o Anuário abordou os delitos sexuais e salientou o seguinte: “Já no caso dos crimes sexuais, uma grande parte da subnotificação se explica pelos custos em que a vítima incorre ao denunciar, tais como exposição a julgamento social ou revitimização por parte das autoridades que deveriam protegê-la.”

O Anuário, ao tratar do estupro, inclusive de vulnerável, destacou o elevado número de vítimas verificado ao longo de uma década e também a alta taxa de subnotificação:

“Ao longo da última década (2012 a 2021), 583.156 pessoas foram vítimas de estupro e estupro de vulnerável no Brasil, segundo os registros policiais. Apenas no último ano, 66.020 boletins de ocorrência de estupro e estupro de vulnerável foram registrados no Brasil, taxa de 30,9 por 100 mil e crescimento de 4,2% em relação ao ano anterior. Estes dados correspondem ao total de vítimas que denunciaram o caso em uma delegacia de polícia e, portanto, a subnotificação é significativa.”

Como já sedimentado na doutrina e na legislação, a violência sexual contra a mulher é uma das formas de violência de gênero, que, a seu turno, pode ser violência doméstica e familiar, como é o estupro marital. Nessas confluências, há diversos outros motivos a contribuir para o silêncio da vítima. Pode estar enredada em uma situação abusiva, com dependências emocional, psicológica e material, muitas vezes com prole para cuidar e manter, além do medo de sua situação se agravar, de o agressor se tornar ainda mais violento, podendo se sentir – e realmente estar – com sua vida em perigo.

Essa sensação de perigo não é à toa. Afinal, 1.341 mulheres foram vítimas de feminicídio em 2021 e o principal autor é o companheiro ou ex-companheiro (81,7%), seguido de parente (14,4%).

“Uma palavra muitas vezes usada para representar essa violência doméstica contra a mulher em sua modalidade mais grave é ‘iceberg’. Nas palavras de Enrique Gracia, professor catedrático de Psicologia Social da Universidade de Valência:”

Uma imagem na qual os casos relatados de violência doméstica contra a mulher (geralmente o ponto mais grave da violência) e homicídio de mulheres por seus parceiros íntimos representa apenas a ponta do iceberg. De acordo com essa metáfora, a maioria dos casos está submersa, supostamente invisível para a sociedade.

Assim, no âmbito da violência doméstica e familiar, pode-se afirmar que para cada feminicídio há uma infinidade de crimes contra a mulher, como ameaças, lesões corporais e crimes sexuais que sequer são reportados, engrossando a chamada cifra oculta, aquela que, embora exista, fica longe da vista e não aparece na estatística oficial.

O desafio é incentivar esse contingente de vítimas invisíveis, que é a parte submersa do iceberg, a romper o silêncio e vir à tona. Entretanto, estimular que as pessoas peçam socorro às polícias com o propósito de registrarem ocorrência não é a melhor medida para certos tipos de criminalidade. Certamente, não é a providência indicada diante do crime organizado nem da milícia, por exemplo, sendo mais prudente que o noticiante nesses casos se utilize do anonimato. Mas na violência de gênero, especialmente aquela que ocorre no contexto doméstico e familiar, pode ser a diferença entre a morte e a sobrevivência.

Segundo o Anuário, com relação à violência doméstica, houve um maior acionamento do número 190, totalizando 619.353 ligações em 2021, contra 595.705 em 2020, o que representa um aumento de 4%.

Consigna-se que o Anuário, a respeito das variações em crimes de gênero, revela que houve uma pequena redução no número de feminicídios – de 1.354 em 2020 para 1.341 em 2021 – mas, de outro lado, no mesmo período, houve crescimento em praticamente todos os indicadores relativos à violência contra mulheres, como as taxas de registros de ameaça e lesões corporais dolosas em contexto de violência doméstica, bem como de assédio sexual e importunação sexual.

A violência de gênero, mesmo subnotificada, contribui para a estatística criminal geral, havendo muito a ser feito para a redução dessa chaga social. A meta, portanto, é suspender esse grande bloco de gelo o máximo possível para cima da linha d’água. Para tanto, precisamos contar com a melhor articulação entre as instituições responsáveis pela segurança pública, com a elaboração e revisão constante das políticas públicas, que devem estar acompanhadas de campanhas de esclarecimento e prevenção permanentes, nas mídias, nas escolas, enfim, em todos os lugares.

Assim fazendo, o Estado estará cumprindo com o dever previsto na Constituição e na lei, sem perder de vista que nos cabe fiscalizar e contribuir para que esse mister seja alcançado, pois, afinal, a responsabilidade da segurança pública é de todos nós. Essa redução da distância entre o direito positivo e a realidade propiciará que as notícias que nos chegarão no futuro, que se quer vizinho, haverão de refletir um quadro reduzido de criminalidade, especialmente aquela que atinge o grupo historicamente vulnerável à violência de gênero, que é o das mulheres de nosso País.

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