O jornal “O Dia” publicou no sábado (4) artigo escrito pelo desembargador Wagner Cinelli, do Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro (TJ-RJ). O magistrado abordou o femirracídio, nomenclatura criada para designar a morte de mulheres negras em decorrência da violência de gênero.
“As mulheres negras não são uma maioria na população geral feminina, mas estão super-representadas na estatística de feminicídio, como confirmam números do 15º Anuário Brasileiro de Segurança Pública. Em 2020, foram registrados 1.350 feminicídios, sendo que 61,8% das vítimas eram negras, a chancelar o determinismo fatal a rondá-las. De fato, apresenta-se apropriada a palavra femirracídio para exprimir essa dura realidade que ataca seletivamente a mulher negra.”
Wagner Cinelli é autor do livro “Sobre ela: uma história de violência” e diretor do premiado curta-metragem de animação “Sobre Ela”.
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Confira a íntegra do artigo:
Femirracídio
Quando ouvi a palavra feminicídio pela primeira vez, soou-me estranha e pesada. Mas intuí de pronto o que significava. É o assassinato de uma mulher praticado em razão do gênero. Ouvindo-a outras vezes, não estranhei mais o som. Porém, o ato ao qual se refere me causa repulsa, como decerto causa na grande maioria das pessoas.
A mulher, na sociedade patriarcal e machista, está em desvantagem. Seu assassinato por um homem que, ao seu inverso, está em vantagem na estrutura social, evidencia o ápice de uma assimetria.
Escuto uma nova palavra: femirracídio. Pareceu-me mais pesada que a anterior, até por conta da letra r dobrada, mas não compreendi seu significado de pronto.
O artigo Femirracídio no Brasil, da professora Raquelli Natale, esclarece a dúvida. É a combinação dos radicais “fem”, que se refere a feminino, e “rac”, do italiano razza (raça), mais o sufixo “cídio”, que exprime a ação que provoca morte. Natale explica que nem todo assassinato de uma mulher negra será femirracídio. Mas o será quando o crime atingir a mulher negra porque é mulher negra.
O injusto fardo sobre os negros tem raízes históricas. Afinal, a escravidão grassou nas Américas e o Brasil foi o último país a dela se despedir, sendo necessárias muitas gerações para correção das desigualdades decorrentes desse sistema baseado na violência e na coisificação das pessoas. Porém, esse fardo é ainda mais pesado para a mulher negra, que enfrenta uma dupla barreira social.
A filósofa Sueli Carneiro, em depoimento para o Portal Geledés, destaca exatamente esse ponto, que são as duas opressões que a mulher negra sofre, a de gênero e a de raça, a resultar em um confinamento perverso.
Navegar nesse ambiente de estrangulação social é um desafio para a mulher negra, que ainda encontra reflexo de sua condição desfavorecida na estatística criminal, a indicar seu maior risco de ter a vida ceifada.
As mulheres negras não são uma maioria na população geral feminina, mas estão super-representadas na estatística de feminicídio, como confirmam números do 15º Anuário Brasileiro de Segurança Pública. Em 2020, foram registrados 1.350 feminicídios, sendo que 61,8% das vítimas eram negras, a chancelar o determinismo fatal a rondá-las.
De fato, apresenta-se apropriada a palavra femirracídio para exprimir essa dura realidade que ataca seletivamente a mulher negra. Compreendido o conceito, impõe-se que a mulher negra ocupe, como de direito, o centro do debate e de ações protetivas em seu favor, de forma a se combater essa iniquidade social.
Ao receber a merecida e atrasada atenção, daremos um passo para nos tornarmos uma sociedade mais civilizada e justa, afastando-nos da vergonha histórica que foi a escravidão, mas sem negá-la. Assim, poderá chegar o dia em que o conceito expresso em femirracídio não fará mais sentido. Oxalá!