AMAERJ | 15 de abril de 2019 13:46

Revista FÓRUM: Marcas da lama

Helicóptero próximo à Estação do Conhecimento

Juíza Simone Ferraz relata os dias de voluntariado na tragédia de Brumadinho

Por EVELYN SOARES e MATHEUS SALOMÃO

Às 12h28 de 25 de janeiro de 2019, a história de Brumadinho (MG) ganhava contornos trágicos: foi a hora exata do rompimento da barragem do Córrego do Feijão I, da mineradora Vale. O Brasil se chocou com as primeiras imagens da cidade mineira e o crescente número de desaparecidos e mortos. O trabalho de resgate por bombeiros foi reforçado com a chegada de voluntários, entre eles, Simone Ferraz, juíza do Tribunal de Justiça do Estado do Rio.

Durante o tempo em que atuou como detetive da Polícia Civil, de 1989 a 1995, Simone recebeu treinamento em primeiros socorros e sobrevivência na mata. Antes de se tornar juíza, em 2007, trabalhou como advogada.

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Simone Ferraz se voluntariou em dois desastres: nas chuvas de Petrópolis, em 1989, e no Morro do Bumba (Niterói), em 2011. Ao saber da tragédia pela TV, ela decidiu se licenciar para ser voluntária em Brumadinho. Dois dias após o estouro da barragem, ela saiu do Rio de Janeiro, às 5h. Dirigiu por 600 km. No portal da cidade, a falsa sensação de tranquilidade não a preparou para o que vivenciaria nos dias posteriores. Após se instalar no hotel, a prioridade foi encontrar o centro de voluntariado.

“Abordei um cabo da Polícia Militar, que me informou onde estavam os voluntários e perguntou se eu era de lá. Quando disse ‘não’, ele me abraçou e chorou de soluçar, repetindo ‘muito obrigado’. Logo depois cheguei à Estação Conhecimento [centro das operações], onde muita gente chorava no alambrado, esperando que alguém fosse localizado. Muitas pessoas gritando, desesperadas, rezando, gente revoltada. Isso foi chocante.”

A desolação com a cena deu lugar à revolta com o que a juíza chamou de “turismo do desastre”. “Assim como chegavam muitas pessoas para ajudar, vinham outras tirando fotos e fazendo lives em redes sociais. Minha primeira tarefa foi afastar os curiosos no papo, mesmo com o nó na garganta.”

Simone ouviu pessoas na tentativa de auxiliar na localização de desaparecidos. A tarefa a exauriu emocionalmente. “Sou juíza, não psicóloga. Não consegui me alimentar e só chorava.”. As últimas tarefas do dia, que só terminou à meianoite, foram separar alimentos e roupas para os desabrigados.

Dores no caminho

Em 1º de fevereiro, Simone conheceu um casal de idosos que estava na Estação Conhecimento desde o desastre. A enxurrada chegou à casa deles enquanto preparavam o almoço para netos e filhos, que não conseguiram escapar. O casal só aceitou ir para a casa de parentes após a juíza garantir que os pegaria no dia seguinte – promessa que cumpriu.

Ela também acompanhou um casal até a mina acima do Córrego do Feijão, que ainda operava. “Não sabia se eles estavam fazendo alguma contenção de emergência ou ainda extraindo minério. O choque é grande. Quando cheguei ao Bumba e vi tudo abaixo, foi desesperador. Quando cheguei a Brumadinho, vi o tamanho do que era. Vi a ganância do homem. Mesmo com a tragédia, com o portão da Vale retorcido, continuavam trabalhando. Lá de cima, avistei o caminho que a lama percorrera. Havia locais em que a lama chegou a 20 metros, altura de um prédio de seis andares.”

Resgate de animais

No último dia no voluntariado, Simone se uniu a voluntários da Fraternidade–Federação Humanitária Internacional, ONG da Espanha especializada no salvamento de animais em desastres. Eles atuaram no hospital de campanha instalado em fazenda alugada pela Vale para acolher animais feridos. Cerca de 40 profissionais e estudantes de veterinária trabalharam no resgate da fauna às margens do Rio Paraopeba

O sofrimento era permanente: dezenas de bichos, de pequeno e grande portes, tinham ferimentos graves, como queimaduras provocadas pela lama misturada ao minério. O cuidado era redobrado para evitar a contaminação por doenças.

“Vários voluntários ficaram doentes, com infecção intestinal, por exemplo. Vi bombeiros com o rosto queimado pelo contato com o minério”, testemunhou ela, que se vacinou contra a febre amarela e ingeriu medicamentos, como prevenção.

Neste dia, 2 de fevereiro, os trovões aterrorizaram os bichos resgatados. “Os veterinários falavam que o som da trovoada deve se assemelhar ao do rompimento da barragem. Nessas horas, todos os cachorros e gatos gritavam. Um boi, em desespero, batia a cabeça na grade para fugir. Tiveram que correr para tranquilizá-lo. Eu o vi chorar. Desde então, nunca mais pus um pedaço de carne na boca.”

Outro animal resgatado a marcou: o cachorro Fiapo, “lindo, que tremia de medo e frio depois que o limpamos da lama. Os voluntários passaram óleo de cozinha nele e em outros bichos para aliviar as queimaduras”.

Retorno doído

As cenas tiraram o sono da juíza, que decidiu voltar para casa em 4 de fevereiro. O cansaço no retorno se mesclou aos poucos momentos bons vividos em Brumadinho: “A emoção e o abraço do policial, a broa de milho com café que tomei com o casal de idosos, a esperança no casal de jovens.”

Os mais de 2 mil km ao volante, o contato com as vítimas da tragédia, todas as lembranças de Brumadinho reforçaram em Simone a sensação de indignação e o fortalecimento do trabalho da Justiça.

“Minério é metal, metal é moeda, e não paga a vida. Gostaria que os empresários passassem meia hora da vida deles colocando a mão naquela lama, vendo as pessoas sofrendo, animais morrendo, sentindo carrapatos e mosquitos na pele. Talvez nunca mais fizessem isso. Mas, enquanto eles não mudam de ideia, nós, juízes criminais, os puniremos.”

Leia aqui a revista completa.

Juíza com equipe da ONG Fraternidade