Em entrevista a este Boletim Extra da AMAERJ, o presidente do Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro (TJ-RJ), Claudio Mello, revela considerar que a pandemia do coronavírus definiu “uma nova normalidade para os serviços judiciais”: a “realidade digital”.
“Não se permite retrocesso”, afirmou o desembargador a respeito das características do trabalho domiciliar e virtual desempenhado por magistrados e servidores durante o período de mais de três meses de isolamento social e fóruns fechados, medidas de enfrentamento à expansão do contágio adotadas pelo Tribunal.
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O trabalho presencial nas unidades judiciais do Estado do Rio será retomado na próxima segunda-feira (29), com limitações à circulação nos ambientes, controles nos acessos e uso obrigatório de máscaras faciais, entre outras providências sanitárias exigidas pelo momento.
“Faço questão de reforçar para os magistrados, servidores, operadores do Direito e usuários do serviço em geral o compromisso de estar atento às orientações das autoridades de saúde e continuar agindo de forma consciente e responsável”, alertou o presidente.
A seguir, leia a entrevista do desembargador.
O sr. poderia nos falar sobre os procedimentos que o Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro está adotando para a retomada dos trabalhos presenciais a partir da próxima segunda-feira?
Claudio Mello: Tendo em vista as medidas adotadas pelas autoridades de saúde pública e sanitárias no Estado do Rio de Janeiro, referente ao plano de retomada das atividades econômicas, o Tribunal de Justiça do Estado do Rio de Janeiro desenvolveu um programa de retorno gradual das atividades presenciais a partir de 29 de junho de 2020, com no mínimo 25%, visando mitigar os riscos de contágio pelo Covid-19 no ambiente laboral, baseado em recomendações da OIT (Organização Internacional do Trabalho) e da OMS (Organização Mundial de Saúde). É importante destacar que a retomada das atividades presenciais leva em consideração os critérios fixados pelas autoridades de saúde pública e pela OMS para a flexibilização do isolamento social. Motivo pelo qual uma série de medidas serão adotadas: (a) controle de acesso aos prédios, com medição de temperatura e exigência do uso de máscaras de proteção facial; (b) distanciamento mínimo; (c) vedação de aglomeração; (d) higienização dos ambientes; (e) disponibilização de álcool em gel etc. O TJ-RJ traçou seu plano baseado nos indicativos de saúde apresentados pelas autoridades públicas na data de sua publicação. As prováveis mudanças de cenários da pandemia no Estado poderão demandar alterações dos procedimentos previstos, como o endurecimento ou a flexibilização das medidas. Faço questão de reforçar para os magistrados, servidores, operadores do Direito e usuários do serviço em geral o compromisso de estar atento às orientações das autoridades de saúde e continuar agindo de forma consciente e responsável. Sendo certo que o sucesso do plano depende não apenas da aderência às ações ora propostas, mas principalmente à adoção de rigorosas práticas de higiene e cuidados pessoais que devem iniciar-se desde a saída de casa.
A decisão de retorno ainda pode ser revista, em função do aumento de número de casos registrados na Região Metropolitana do Rio nos últimos dias e da previsão de especialistas sobre uma segunda onda de contágio da doença?
Mello: Sim, o plano está aderente as recomendações médicas e sanitárias, sendo previsto em sua normativa no art. 35 que “a duração de cada etapa poderá ser prorrogada, bem como poderá haver retorno às etapas anteriores em atenção às recomendações de saúde pública para combate à pandemia do COVID-19.”
Pelo Fórum Central passavam diariamente, antes da pandemia, até 50 mil pessoas. Com o retorno, que se dará com rigorosas medidas restritivas de circulação, o sr. prevê que essa frequência cairá a quanto?
Mello: Sim. As pessoas estão se adaptando a uma nova realidade, uma nova normalidade. É natural que neste momento pós isolamento social as pessoas ainda mantenham hábitos restritivos com medo e receio de contaminação. Acredito que teremos uma queda de 40% a 50% do volume diário de pessoas no Fórum.
A produtividade do TJ-RJ durante estes meses de isolamento social bateu recordes, embora magistrados e servidores tenham trabalhado de casa. O serviço domiciliar veio para ficar? O sr. é favorável, passada a pandemia, à manutenção das audiências virtuais, das reuniões em teleconferência, da prática do teletrabalho?
Mello: Ouso dizer que neste caso específico não teremos a volta da “normalidade”, o passo dado, não se permite retrocesso, esse momento definiu uma nova normalidade para os serviços judiciais, uma nova realidade: a realidade digital. Tanto o teletrabalho quanto as audiências virtuais serão, sim, incorporados, em razão dos amplos benefícios que trazem para a prestação jurisdicional. Claro que não substituirão o que tínhamos antes, mas se tornarão mais uma possibilidade. Nas audiências virtuais, por exemplo, testemunhas poderão participar sem ter de se deslocar a um fórum, por vezes situado em outra cidade, o que implica em um custo não só financeiro, mas também de tempo muito grande, bastando acessarem um link de seus celulares. Vítimas, por sua vez, não precisarão estar próximas de seus algozes novamente, o que pode ser um alívio para elas. E, por fim, para os próprios advogados, pode se mostrar muito interessante, não só por permitir que assumam casos em outras cidades e mesmo Estados, mas também por facilitar a comunicação com os magistrados, que também poderão atendê-los por videoconferência. De outro lado, o home office apresentou uma gama muito grande de vantagens, como por exemplo, alta produtividade, redução das despesas, melhor racionalização do tempo de trabalho, redução de custos operacionais etc. É algo que será incorporado ao nosso dia a dia, como de todas as empresas e órgãos públicos. O tempo gasto pelo servidor e pelo magistrado em deslocamento para o serviço, com o trânsito caótico de nossa cidade, se refletirá em maior produtividade e celeridade na prestação jurisdicional.
Que ensinamentos o Poder Judiciário e, em especial, o TJ-RJ tiram dessa experiência inédita, tão dramática para a sociedade mundial, com impacto fortíssimo sobre o dia-a-dia do Sistema de Justiça?
Mello: A mobilização global em torno da Covid-19 não terá implicações apenas na forma como organizamos nossos sistemas de saúde, mas também deve moldar a maneira como estruturamos a economia, a política, a cultura e o Judiciário para o futuro. Ao escolher entre alternativas que teremos, devemos nos perguntar não apenas como superar a ameaça imediata, mas também que tipo de mundo habitaremos quando a tempestade passar. Sim, a tempestade passará, a humanidade sobreviverá, se Deus quiser todos nós estaremos vivos — mas habitaremos um mundo diferente, isso não tenho dúvida. Esse mundo diferente já começou a ser moldado no Judiciário! O Judiciário passou nos últimos 90 dias pela maior transformação digital que se viu nos últimos dez anos. De fato, a evolução da pandemia e a necessidade de reduzir drasticamente a presença física nos fóruns na tentativa de diminuir a curva de contágio do coronavírus jogou para o Judiciário um grande desafio: diante de um problema inesperado, é preciso achar soluções para continuar as atividades jurisdicionais e administrativas dos tribunais, recorrendo apenas a ferramentas disponíveis nas atuais condições. Até o início das medidas de isolamento social e domiciliar, a regra no Poder Judiciário sempre foi a presença física em seus fóruns, sendo certo que só excepcionalmentese admitia o trabalho em regime de home office, da mesma forma as audiências e sessões por videoconferência. Os novos tempos demandam celeridade processual. Somente conseguiremos alcançar o pleno acesso à Justiça quando somarmos todas as forças disponíveis. E um ator relevante é, sem dúvida, a ferramenta tecnológica. Ela possibilitou ao Judiciário continuar trabalhando e produzindo a pleno vapor neste período de isolamento social. O Judiciário não parou e não para nunca! Durante este período foram prolatadas no Judiciário nacional mais de 5 milhões de sentenças e 8 milhões de decisões. Só no TJ-RJ foram aproximadamente 430 mil sentenças e 440 mil decisões. Muitas vezes o que a crise traz não é uma transformação total das realidades, mas, sim, uma aceleração de realidades que já apontavam cenários de futuro. Alguns exemplos são o trabalho remoto (home office) e a economia freelancer, com o enfraquecimento das organizações e a necessidade de trabalhar de forma independente. Isso gera vários desafios para a economia, para a sociedade e para o Judiciário. O interessante é a reflexão sobre um novo contexto de mundo, uma nova normalidade e uma nova realidade, pós-Covid-19. Nesse ponto destaca-se cada vez o comprometimento de uma prestação jurisdicional célere e efetiva e também a busca por medidas alternativas de solução de conflito. A mediação consiste no meio consensual de abordagem de controvérsias em que um terceiro imparcial atua para facilitar a comunicação entre os envolvidos e propiciar que eles possam, a partir da percepção ampliada dos meandros da situação controvertida, protagonizar saídas produtivas. Se constitui num método alternativo a resolução de conflitos. Alcance-se, portanto, por meio da mediação, o aspecto humano do conflito. Sabe-se que grande parte das demandas/lide decorrentes do Covid-19 têm por motivação um fator que foge da previsibilidade das partes e que, por isso, gera impasse no momento de atribuição de responsabilidades. Em situações de crise, o Direito não pode ser lido sem o compromisso com o outro. É necessário escuta ativa, identificação de interesses, exercício da empatia e, sobretudo, criatividade na geração de opções, benefícios esses encontrados na mediação enquanto ferramenta de gestão de conflitos. Adotar posturas colaborativas, que visem a resolutividade das demandas é também reflexo do respeito à responsabilidade social da empresa. Nesse sentido, acredito que podemos fazer da crise uma oportunidade. Afinal, esse poder de ressignificar os conflitos é algo inerente à mediação.