Em artigo publicado no site do jornal “O Estado de S. Paulo”, nesta quinta-feira (2), a juíza do TJ-RJ Mirian Castro Neves (1ª Vara de Família de Bangu) criticou o PL 7024/2017, da Câmara, que anula as sentenças condenatórias fundamentadas exclusivamente no depoimento de policiais. Ela ressaltou que, na maioria das vezes, a única testemunha do tráfico é o PM que fez a apreensão da droga. “Não ter meios para punir as condutas relacionadas ao tráfico é uma maneira de implantar dissimuladamente a descriminalização do tráfico e perpetuar o ciclo nefasto da criminalidade e impunidade”, escreveu.
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Mirian Castro destacou que o Estado deve pautar sua atuação para dissuadir o criminoso da prática do crime. De acordo com a juíza, o Estado tem de ser uma ameaça crível.
“Legislação que venha para reduzir a capacidade estatal de garantir a proteção da sociedade, excluindo validade do depoimento de alguém pela sua atividade profissional, viola o princípio constitucional da isonomia, porque embasada em fator fortuito e sem pertinência com qualquer legislação de combate ao tráfico de drogas. Esse projeto de lei é exemplo evidente de produção legislativa com vista à proteção do criminoso em detrimento da proteção da sociedade.”
Leia a íntegra do artigo:
O Estado tem que ser uma ameaça crível
A violência e a segurança pública são temas mais do que atuais, são questões debatidas em cada esquina de nosso país e uma dolorosa realidade.
O viés mais perverso da criminalidade é o dos crimes relacionados a mortes violentas. O tráfico de drogas está inegavelmente relacionado a muitas delas.
A estatística de mortes violentas no Brasil já nos colocou no topo do ranking mundial. Infelizmente , o Brasil tem o ignominioso índice de 13% de todas as mortes violentas no mundo.
Em 2016, houve mais se 60.000 mortes violentas no Brasil. A estatística de elucidação desses crimes é muito baixa, somente 8% têm a autoria descoberta. Somos um país de alta impunidade.
Atua o criminoso na lógica que inspira qualquer decisão, mediante avaliação dos custos envolvidos na empreitada – risco de punição – e a possibilidade de sucesso da atividade criminosa. O crime é ato volitivo e consciente a partir de uma avaliação prévia de custo-benefício, como demonstrou o economista Gary Becker. A prática do crime é uma decisão racional.
A partir desta constatação, o Estado deve pautar sua atuação para dissuadir o criminoso da prática do crime. O Estado tem de ser uma ameaça crível.
A legislação penal e a de execução devem ser um convincente desestímulo ao delito. Impõe-se a observância ao princípio da vedação da proteção deficiente na produção legislativa, pelo qual o Estado garante os direitos fundamentais da sociedade e não apenas os dos criminosos.
Neste sentido, as penas cominadas, as penas aplicadas e a forma de cumprimento das penas têm de, minimamente, corresponder à gravidade do mal perpetrado e à necessidade de proteção da sociedade na qual seus efeitos repercutem.
Nessa seara, não se pode deixar de mencionar o PL 7024, que insere parágrafo em artigo da lei 11.343/2006, como exemplo contrário ao da proteção que espera a sociedade.
Por este projeto, sentença condenatória proferida com base exclusivamente em prova testemunhal de um não policial é hígida e não afronta nem desequilibra o contraditório, essa uma das razões do projeto, porém com base apenas em testemunho de policial é nula.
Nítida a violação ao princípio de isonomia, artigo 5º da Constituição da República. Inexiste fundamento lógico, razoável e que guarde pertinência com a finalidade a que se destina a lei anti-tóxicos, punir as condutas nela elencadas, com o fator de discrímen desse PL 7024/17 – a condição de policial da testemunha.
Buscar o desencarceramento por meio da desqualificação da testemunha ou presumir suscetibilidade do magistrado e por isso desequilíbrio no contraditório, esses são os fundamentos apontados para a apresentação do projeto, é estabelecer tratamento diferenciado à apuração do crime de tráfico e à prova do crime, sem relação com o fator discriminatório.
Legislação que venha para reduzir a capacidade estatal de garantir a proteção da sociedade, excluindo validade do depoimento de alguém pela sua atividade profissional, viola o princípio constitucional da isonomia, porque embasada em fator fortuito e sem pertinência com qualquer legislação de combate ao tráfico de drogas.
As condutas relacionadas ao tráfico são criminalizadas no Brasil e não ter meios para puni-las, à medida que a prática indica que na maioria das vezes a única testemunha do tráfico é o policial que fez a apreensão da droga, é uma maneira de implantar dissimuladamente a descriminalização do tráfico e perpetuar o ciclo nefasto da criminalidade e impunidade.
Esse projeto de lei é exemplo evidente de produção legislativa com vista à proteção do criminoso em detrimento da proteção da sociedade.
A ideia de que criminoso é vítima da sociedade, séria e cientificamente refutada pelo pós-doutor Pery Shikida, que se dedica a pesquisar sobre economia do crime, visa a retirar a responsabilidade do criminoso pelo crime e atomiza-lá por todos os membros da sociedade, que passam a ter o dever de compensar o criminoso.
Compensa-se o criminoso com a elaboração de leis laxistas, interpretação e aplicação das leis para a mitigação da sua responsabilidade, pois elevado à situação de vítima da sociedade. Nesse exercício interpretativo, a sociedade é vilanizada.
Essa inversão ideológica de valores é um ciclo renitente no país. Cabe a cada cidadão, através dos meios constitucionais disponíveis, atuar para pôr fim a isso. Lembro a frase do escritor Franco-argelino Albert Camus “A vida é a soma de todas as nossas escolhas”.
* Mirian Castro, Juíza de Direito – RJ (artigo publicado no blog Fausto Macedo)