Brasil | 30 de julho de 2018 12:47

Cinco mulheres vão comandar a Justiça pela primeira vez

* Jota

Rosa Weber assumirá o TSE | Foto: Rosinei Coutinho/SCO/STF

O dia 15 de agosto de 2018 está marcado para se tornar uma data histórica. Com a posse da ministra Rosa Weber na Presidência do Tribunal Superior Eleitoral (TSE), o Brasil passará a ter, pela primeira vez, cinco mulheres no comando das principais instituições jurídicas do país, ainda que pelo período de um mês. As demais integrantes do grupo são as presidentes Cármen Lúcia (STF e CNJ) e Laurita Vaz (STJ), a procuradora-geral da República, Raquel Dodge, e a advogada-geral da União, Grace Mendonça.

Durante a Primeira Conferência Nacional das Procuradoras da República, em junho de 2018, a ministra Cármen Lúcia e a procuradora-geral da República, Raquel Dodge, destacaram a necessidade de ampliação da representação feminina em grandes espaços de poder. Isso porque, muito embora as mulheres estejam em maior número nas carreiras jurídicas, em sua maioria permanecem na parte mais baixa da estrutura organizacional das instituições, em postos sem poder de decisão.

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Esse fenômeno é conhecido na literatura especializada por labirinto da liderança, que nada mais é do que a segregação hierárquica ou vertical de gênero no mercado de trabalho, em razão da complexidade e da pluralidade de obstáculos encontrados pelas mulheres para alcançar postos de comando. Um resultado da omissão seletiva pela qual ainda passam as mulheres no Brasil e no mundo.

A luta pelo reconhecimento do direito das mulheres ao acesso à educação e ao trabalho foi árdua e a jornada ainda é longa. E apesar da enorme resistência à liderança feminina no mercado de trabalho, fato é que a partir de agosto do corrente ano, 5 mulheres estarão em postos de poder nas maiores instituições jurídicas nacionais. Para além da óbvia importância simbólica, há reflexos já muito claros de mudanças geradas por esse raro cenário.

Cronologicamente, a ministra Laurita Vaz foi a primeira dessas cinco personagens a ocupar um posto de comando, tornando-se a Presidente do Superior Tribunal de Justiça em 1º setembro de 2016. Aliás, a ministra Laurita Vaz é a primeira mulher Presidente da história daquele Tribunal. Em seu discurso de posse, a ministra expôs as inúmeras dificuldades vividas ao longo de sua trajetória, tais como a dupla jornada de trabalho e o desafio de conciliar os estudos, a carreira, as tarefas de casa, a criação dos filhos, a convivência em família.

Talvez por ter vivido a dura realidade do labirinto da liderança e preocupada com a inserção da mulher em postos de trabalho de relevância, a ministra ampliou a participação feminina nos cargos de direção da Corte assim que tomou posse como presidente. A Diretoria-Geral do STJ, por exemplo, foi assumida por uma servidora de carreira, e, das 12 secretarias que compõem o Tribunal, sete são dirigidas por mulheres.

Em 9 de setembro de 2016, a Advocacia-Geral da União passou a ser liderada por uma mulher. Grace Mendonça, além de se tornar a primeira advogada-geral da União é também a única mulher a integrar uma pasta com status de Ministério na gestão do Presidente Michel Temer. A ministra integra a AGU desde 2001 e hoje comanda 12 mil advogados públicos de todo país e 20 milhões de processos ao ano, em posição fundamentalmente estratégica no cenário nacional.

Desde sua posse, foram promovidas inúmeras ações institucionais e judiciais pelo combate à violência contra a mulher. Aliás, foi a ministra Grace Mendonça a responsável por defender a constitucionalidade da Lei Maria da Penha no STF, quando ainda era Secretária-Geral de Contencioso da AGU.

Foi também de responsabilidade da Advogada-Geral da União a instituição das “Ações Regressivas Maria da Penha”, que são ações judiciais para cobrar dos maridos que assassinaram suas esposas todas as despesas que o Instituto Nacional de Seguro Social teve com o pagamento de pensão por morte aos familiares das vítimas. Até o fim de 2017, a AGU já tinha ajuizado 14 ações regressivas contra os agressores, sendo 8 delas com pedidos julgados procedentes e uma das quais já com trânsito em julgado em favor da União.

Mesmo diante dessa postura ativa em defesa dos direitos da mulher desde à época em que era Secretária-Geral de Contencioso da AGU, a hoje ministra Grace Mendonça contou, em entrevista a Roseann Kennedy, que um colega pediu para se retirar da equipe de trabalho que ela liderava por não se sentir confortável em ser coordenado por uma mulher.

Esse fato deixa em evidência um elemento importante sobre a discriminação da mulher nas carreiras públicas: ainda que o ingresso por concurso ajude a neutralizar diferenças de gêneros na carreira, a ascensão a patamares de chefia que dependam de nomeação se torna altamente improvável para as mulheres.

Em 12 de setembro de 2016, a ministra Cármen Lúcia foi empossada como a segunda mulher presidente da história do Supremo Tribunal Federal. Desde então, ela tem se posicionado com muita firmeza em discussões importantes relacionadas aos direitos das mulheres e ao combate à violência doméstica. Uma das maiores defensoras da Lei Maria da Penha, a Ministra é a criadora da campanha “Justiça pela paz em casa”.

O projeto, cujo objetivo é ampliar a efetividade da Lei Maria da Penha, concentrando esforços para agilizar o andamento dos processos relacionados à violência de gênero, tem ganhado muita força com o apoio do Conselho Nacional de Justiça. A pretensão é a de que, até agosto de 2018, tenham havido mil júris de feminicídio em todo país. Impressionam os números divulgados pelo Conselho Nacional de Justiça, para o ano de 2018, relacionados à campanha. Em números absolutos, foram concedidas 7.315 medidas protetivas (sendo 1.499 no TJ-RS, 1.061 no TJ-RJ e 823 no TJ-SP); foram proferidas 9.052 sentenças com resolução de mérito (1.093 no TJ-RJ, 1.004 no TJ-AM e 859 no TJ-PA); foram proferidas 5.997 sentenças sem resolução de mérito (1.598 no TJ-RJ, 760 no TJ-RS e 438 no TJ-MA) e foram realizadas 58 sessões do júri (sendo 22 no TJ-SP, 4 no TJ-RJ , 4 no TJ-ES e 4 no TJ-PR).

Além disso, foi sentada na cadeira mais importante do Supremo Tribunal Federal que a ministra Cármen Lúcia apontou para um grave problema que acomete o Poder Judiciário como um todo e que ocorre mesmo quando as mulheres alcançam altas posições de suas carreiras: os tribunais são espaços dominados por homens e a ascensão feminina ainda é muito hostilizada.

Em 10 de maio de 2017, em sessão plenária do STF e após uma sequência de diálogos entre alguns pares durante voto proferido pela ministra Rosa Weber, o ministro Luiz Fux finalizou seu aparte afirmando: “concedo a palavra para o voto integral” – fala que provocou risos nos demais ministros.

Claramente irritada com o ocorrido, a ministra Cármen Lúcia tomou a palavra lembrando ao ministro que seria a vez de a ministra Rosa Weber votar e caberia a ela conceder um aparte a ele, e não o contrário. E continuou sua fala ressaltando as lamentáveis conclusões da pesquisa Justice, Interrupted: The Effect of Gender, Ideology and Seniority at Supreme Court Oral Arguments, realizada por Tonja Jacconi e por Dylan Schweers: nos tribunais norte-americanos, mulheres são mais frequentemente interrompidas em suas falas do que os homens.

A presidente do Supremo Tribunal Federal ainda relembrou aos presentes a resposta que deu à juíza da Suprema Corte Americana, Sonia Sotomayor, quando por ela questionada sobre a ocorrência, no STF, de interrupções sistemáticas nas falas das ministras: “Lá, em geral, eu e a ministra Rosa, não nos deixam falar, então nós não somos interrompidas”.

Em episódio mais recente, em abril de 2018, quando o STF se debruçava sobre um caso de extrema relevância nacional, o entendimento a ser firmado pela ministra Rosa Weber criava decisivo precedente para a Corte. Durante a leitura de seu voto, entretanto, foi interrompida 3 vezes por seus colegas e, na última delas, sequer conseguia se lembrar em que trecho da leitura havia parado. No mesmo julgamento, os ministros Luís Roberto Barroso e Celso de Mello proferiram seus votos por horas sem sofrer interrupções significativas de seus colegas de Plenário.

A valorização feminina é tema de preocupação também para o Ministério Público Federal, comandado por Raquel Dodge desde setembro de 2017. A procuradora-geral da República inseriu em sua agenda institucional debates importantes sobre violência doméstica, inclusive em nível internacional.

A defesa das mulheres também foi efetivada na atuação da PGR em matéria eleitoral. Raquel Dodge tem agido no sentido de fortalecer mecanismos para aumentar a participação feminina na política. Ainda em 2017, a procuradora-geral da República se manifestou perante ao STF em ADI que questiona a reserva de recursos do Fundo Partidário para o financiamento de candidaturas femininas. O Plenário do STF acolheu o pedido da PGR de aplicar ao menos 30% dos recursos públicos de campanha na divulgação das candidaturas de mulheres.

Outro questionamento formulado pela Procuradoria-Geral da República no TSE defendeu a adoção de cotas femininas na composição dos diretórios partidários, como forma de viabilizar candidaturas efetivas. Assegurar a participação feminina nas estruturas partidárias, contribui para a redução de “candidaturas laranjas”, adotadas pelos partidos políticos como forma de fraudar a norma prevista no artigo 10, da Lei nº 9.504/97.

A relatora da consulta no TSE é a ministra Rosa Weber – próxima a tomar posse como presidente daquela Corte em ano de eleição – e o julgamento do processo aconteceu no fim de maio. O voto proferido pela ministra Rosa Weber foi considerado histórico pelos colegas de Tribunal e determinou a fixação de um patamar mínimo de 30% do fundo eleitoral para candidaturas de mulheres. Considerando o tema de extrema relevância, Raquel Dodge avocou para a si a responsabilidade pela sustentação oral, que normalmente fica a cargo do vice-procurador-geral eleitoral, e ressaltou que “sendo ambos fundos públicos para custeio de campanhas eleitorais, um complementar ao outro, impossível que o princípio constitucional da igualdade não se irradie sobre ambos da mesma forma”. Em extensão, o TSE decidiu reservar um mínimo de 30% do tempo de propaganda eleitoral para candidatas mulheres.

Sem dúvida alguma, o protagonismo de Raquel Dodge e da ministra Rosa Weber tem o potencial de mudar os rumos do país nas urnas em 2018, na medida em que garante maior participação feminina nas eleições.

Recente estudo publicado no Journal of Economic Behavior & Organization, pelos pesquisadores Chandan Jha e Sudipta Sarangi, revela que entre mais de 125 países, incluindo o Brasil, a corrupção é menor onde mais mulheres participam do governo. O estudo concluiu que é na formulação de novas políticas que as mulheres podem ter um impacto sobre a corrupção, o que reforça a importância empoderamento das mulheres, sua presença em cargos de liderança e sua representação no governo.

As mudanças sociais que essas 5 mulheres vêm promovendo de forma significativa no cenário brasileiro já podem ser concretamente sentidas, portanto. A Justiça do Brasil já percebe mudanças claras desse forte componente feminino no topo da pirâmide. Não se nega que a influência masculina dominante na Justiça contribua, em algum grau, para dificultar que elas expressem suas personalidades. No entanto, se vê que já não é possível impedi-las de alcançar seus propósitos, por mais intrincados e complexos que sejam os caminhos.

Dionísia Floresta, mulher revolucionária da sociedade do século XIX, registrou em sua obra “Opúsculo Humanitário”, escrito em 1853, que “A esperança de que, nas gerações futuras do Brasil, ela (a mulher) assumirá a posição que lhe compete nos pode somente consolar de sua sorte presente”. Ao que tudo indica, a esperança de Dionísia, ainda que enfrentando muitos percalços, está se transformando em realidade.

* Artigo da advogada Flávia Cardoso Campos Guth, publicado no site Jota