Em artigo publicado nesta quinta-feira (19) no site do jornal “O Globo”, o desembargador Marco Aurélio Bezerra de Melo, do Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro (TJ-RJ), escreve “ser urgente atestar o descumprimento da Constituição Federal” na questão da regularização dos quilombos nacionais.
Informa o magistrado no texto que existem no Brasil cerca de 3.000 remanescentes de quilombos, dos quais pouco mais de cem tiveram, pelo governo, o reconhecimento da posse de terra por seus ocupantes, conforme reza a Constituição de 1988.
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“O fato é que contamos, nesse caso, com uma efetividade constitucional muito baixa, que conta com pouco mais de 3% em 30 anos e dois anos de vigência da Constituição”, pondera Bezerra de Melo.
Leia abaixo a íntegra do artigo.
Quilombos de Palmares até hoje
Há mais de três mil no Brasil, e pouco mais de cem tiveram o reconhecimento da propriedade
Quando pensamos em quilombo no Brasil vem à nossa mente o famoso Quilombo dos Palmares, sediado no Nordeste e que contemplou uma rede de 12 quilombos, chegando a contar com mais de 20 mil pessoas. Zumbi, herdeiro de seu tio Ganga Zumba, foi o chefe dessa nação africana sediada em solo brasileiro e, por ter sido assassinado no dia 20 de novembro de 1695, tal data passou a ser identificada como o Dia da Consciência Negra. Sua cabeça foi cortada, salgada e levada para exposição na cidade do Recife, com os seguintes dizeres: “para satisfazer os ofendidos e justamente queixosos e para atemorizar os negros que achavam que ele era imortal.”
A escravidão negra no Brasil durou cerca de 350 anos, e a formação de quilombos nunca deixou de existir. A tirania do regime econômico escravocrata foi acompanhada pelo anseio natural de liberdade inerente a todo ser humano. Em seu “Dicionário Banto”, o artista e pesquisador Nei Lopes define quilombo como sendo um “aldeamento de escravos fugidos”. Outras denominações foram dadas como palenques nas colônias espanholas, marrons nas inglesas e grand marronage nas francesas.
Dados históricos apontam que 15 milhões de africanos foram arrancados de suas terras para a América, sendo que 40% foram utilizados no trabalho servil no Brasil, no que se chama de diáspora africana. Apenas para que se tenha uma noção de grandeza, no primeiro Censo, realizado em 1872, chegou-se a um número de 9.930.478 habitantes no Brasil.
Seguindo a orientação de convenções internacionais, o poder constituinte de 1987 reconheceu a importância de se conferir maior visibilidade e proteção aos cidadãos quilombolas e à preservação, a bem da Cultura, de tais territórios. Procurou-se atribuir maior dignidade à etnia africana, que contribuiu para a formação do processo civilizatório nacional, tutelando constitucionalmente os modos de criar, fazer e viver nos quilombos na atualidade.
Nessa linha, o artigo 68 do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias estabeleceu com linguagem direta que “aos remanescentes das comunidades dos quilombos que estejam ocupando suas terras é reconhecida a propriedade definitiva, devendo o Estado emitir-lhes os títulos respectivos.”
O governo brasileiro já reconheceu, por meio de laudos antropológicos e históricos, que há mais de três mil quilombos remanescentes no Brasil e pouco mais de cem tiveram o reconhecimento da propriedade, gerando insegurança, violência no campo e dificuldade de emancipação social e econômica de tais comunidades. O fato é que contamos, nesse caso, com uma efetividade constitucional muito baixa, que conta com pouco mais de 3% em 30 anos e dois anos de vigência da Constituição.
Há alguns avanços que merecem registro.
O STF reconheceu em 08/02/2018 a constitucionalidade do decreto federal 4887/03, que se propõe a tornar efetivo esse comando, inclusive a legitimidade do critério da autodefinição.
A Escola da Magistratura do Estado do Rio de Janeiro criou recentemente um fórum específico para a discussão jurídica das Relações Raciais no Brasil, criando o troféu Esperança Garcia, contemplando os artistas negros Nei Lopes, Maria da Conceição Evaristo de Brito e Elza Soares, além de promover nesse mesmo mês um debate importante com o lançamento do livro denominado “Mulheres quilombolas”.
Digno de nota também: o Instituto dos Advogados Brasileiros aprovou por unanimidade relatório jurídico que objetiva uma discussão acerca da reparação da escravidão negra.
A cidade de Cavalcante, no Estado de Góias, elegeu Vilmar Kalunga, o primeiro prefeito quilombola do Brasil.
Outros exemplos poderiam ser dados, mas parece que de fato já avançamos para trazermos em nosso íntimo, enquanto comunidade, aversão total a qualquer manifestação que revele racismo, fato social que encontra reprimenda na legislação civil e criminal pátria.
São algumas notícias auspiciosas que denotam melhoria na nossa maturidade racial que, conquanto tardia tanto quanto se mostra a abolição inconclusa da escravidão, pode trazer algum alento à maioria do povo brasileiro que conta com uma justiça racial mais efetiva.
Entretanto para ficar apenas no caso dos territórios remanescentes de quilombos, urgente atestar o descumprimento de fato da Constituição Federal e avançar para o reconhecimento da propriedade efetiva dessas terras com a devida regularização no tocante à instalação de equipamentos urbanos e comunitários como postos de saúde, escolas, frentes de trabalho, facilidades para o escoamento da produção agrícola etc.
As medidas acima são apenas alguns exemplos de medidas aptas a proporcionar uma vida digna aos atuais remanescentes dos quilombos que se formaram no Brasil em afronta ao cerco da terra e do cativeiro pessoal, e hoje tais comunidades, mesmo contando com a proteção constitucional para o fim da preservação da cultura brasileira, conforme determinam os artigos 215 e 216, encontram-se, em grande maioria, em calamitoso estado de miserabilidade econômica e social.
Por ora, enquanto essa realidade proprietária ainda não se efetiva, que, ao menos, haja o reconhecimento da intangibilidade desses territórios por meio de firme proteção possessória que deve ser compreendida como direito fundamental previsto na nossa Lei Maior.
Oxalá que essas linhas mal traçadas sirvam ao menos para uma reflexão à luz do que impõe a nossa Constituição.
Marco Aurélio Bezerra de Melo é desembargador do Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro e professor emérito da Escola de Magistratura do Estado do Rio de Janeiro