Além de fenômenos naturais, guerras e questões políticas, a violência doméstica é um fator que leva ao êxodo forçado. O tema foi tratado pelo desembargador Wagner Cinelli, do Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro (TJ-RJ), no artigo “Estrangeiras por falta de opção”, publicado no site do jornal “Monitor Mercantil”.
“Fugir para se refugiar, refugiar-se para sobreviver. Sua viagem internacional não é de turismo, mas do renascimento possível, fadadas a continuarem suas vidas em outra terra, estrangeiras vitalícias por ausência de outra opção”, escreveu.
Wagner Cinelli é autor do livro “Sobre ela: uma história de violência” e diretor do premiado curta-metragem de animação “Sobre Ela”.
Estrangeiras por falta de opção
Não é novidade que os seres humanos mudam de lugar. Há migrações voluntárias, mas há também um enorme contingente de pessoas compulsoriamente deslocadas de suas casas, de suas cidades e até de seus países em razão de fatos da natureza, como os terremotos no Haiti, ou de fatos da sociedade, como a guerra civil que ocorre na Síria desde 2011.
Haiti e Síria são exemplos atuais de nações de retirantes. Mas há muitos outros países cujas populações experimentam o deslocamento forçado.
A Agência da ONU para Refugiados (Acnur) aponta que a quantidade de pessoas obrigadas a se deslocar, dentro e fora de fronteiras nacionais, tem aumentado e que totalizava mais de 80 milhões em meados de 2020. Ou seja, mais de 1% da população mundial. Desse número, 26 milhões são refugiados e mais da metade são mulheres e meninas.
Além das guerras, das questões políticas e dos cataclismos, a violência doméstica é também um dos fatores que levam ao êxodo forçado, e casos de refugiadas que escaparam dessa violência estão retratados na publicação Mulheres em fuga, da Acnur.
O marido de Claudia era membro da Mara Salvatrucha, conhecida gangue de El Salvador. Segundo seu relato, ele a submetia à violência e a mantinha sob total controle. Mariela, do México, foi espancada pelo marido por muitos anos e tentou deixá-lo várias vezes, mas era perseguida e capturada, até que finalmente conseguiu fugir e entrar nos EUA. Outra refugiada, vinda de Honduras, reportou que era agredida pelo marido na frente dos filhos e que quase morreu em um desses episódios de brutalidade. Uma mulher da Guatemala contou que seu marido a mantinha encarcerada na residência do casal, agredindo-a verbal e fisicamente, inclusive com ameaça de faca no pescoço.
Essas mulheres vítimas de violência doméstica pelas mãos de seus companheiros sofrem da falta de proteção estatal. Não confiam nas instituições ou, quando as procuram, não encontram a resposta e o apoio esperados. O depoimento de uma das refugiadas bem reflete essa realidade. Narrou que estava ensanguentada na frente do policial, que, tomando o partido do agressor, lhe disse: “Bem, ele é seu marido”. Outra vítima expôs que, quando a polícia chegou em sua casa e viu que era caso de violência doméstica, falou que o casal deveria resolver seus problemas entre si.
Há ainda relatos de agressores que são presos em flagrante, mas rapidamente ganham a liberdade, deixando as vítimas inseguras, com receio de que fiquem ainda mais agressivos.
Claudia, Mariela e muitas outras, todas vítimas de seus companheiros, sabem que manifestar a intenção de separação ou divórcio perante um homem agressor pode significar seu túmulo. Restou-lhes o afastamento, geralmente levando os filhos, indo para longe, inclusive deixando sua pátria. Fugir para se refugiar, refugiar-se para sobreviver. Sua viagem internacional não é de turismo, mas do renascimento possível, fadadas a continuarem suas vidas em outra terra, estrangeiras vitalícias por ausência de outra opção.
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