Todas as leis estão subordinadas a um conjunto hierarquizado de normas jurídicas, sendo a mais importante a Constituição. Nesse sentido, mesmo na ausência de legislação específica, os dispositivos constitucionais devem garantir que não ocorram interpretações excludentes dos direitos de minorias.
Com base nesses fundamentos, a 20ª Câmara Cível do Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro reconheceu, por maioria, o direito de um casal de mulheres de acrescentar no registro civil de seu filho a informação de que ele possui uma segunda mãe. A decisão, em processo sob segredo de Justiça, foi publicada na última segunda-feira (3/2).
As mulheres já viviam em união estável reconhecida em escritura pública em 10 de julho de 2012, quando a criança nasceu. Sua concepção ocorreu por inseminação artificial heteróloga, com óvulos e sêmen de doadores anônimos. No registro de nascimento consta como mãe apenas aquela em cujo útero o embrião se desenvolveu.
De acordo com o desembargador Luciano Barreto, que relatou o acórdão, “numa sociedade democrática, na qual o pluralismo e a convivência harmônica dos contrários devem subsistir, não há espaço para prevalência de normas jurídicas que conduzam a interpretações excludentes dos direitos de minorias”.
Ainda segundo ele, os dispositivos constitucionais devem ser interpretados no sentido de que “há discriminação em se negar que duas mulheres, que vivem em união estável homoafetiva e que contribuíram para a existência física de uma criança, não possam ser consideradas genitoras”. Para Barreto, a “compreensão literal” de tais dispositivos é capaz de criar “uma odiosa e confinante marginalização social de pares, que acabará por estrangular a democracia e, via oblíqua, o próprio Estado Pluralista de Direito.”
Com essa decisão, assinala o desembargador, a criança poderá alcançar outros direitos. “Na ausência, ainda que temporária de uma, a outra legalmente representará a criança perante escola, hospital etc. Na falta de uma, os direitos previdenciários e sucessórios ficam garantidos”, informa.
Em sua declaração de voto, o desembargador Marco Antônio Ibrahim explica que tal deferimento não é inédito na Justiça brasileira. Embora ainda de forma incipiente, a jurisprudência já conta com vários precedentes permitindo o duplo registro dos nomes de casais homoafetivos no registro de nascimento. Na sua visão, esta é uma “imposição lógica”, na medida em que se passou a admitir a adoção de crianças por casais homoafetivos.
“Em múltiplos aspectos jus-sociológicos, a lei está quase sempre atrasada ou defasada em relação ao fato social, daí porque os tribunais, mundo afora, têm tido a primazia (e o bom senso) de reconhecer realidades que os legisladores, por ignorância ou covardia, demoram a admitir como existentes”, afirma Ibrahim.
Já o relator conclui assim seu voto: “Não proclamar tal pretensão corresponderia a uma usurpação principiológica da dignidade da pessoa humana e da cidadania (artigo 1º, incisos II e III, CF/88), e dos direitos fundamentais à igualdade (artigo 5º, caput e inciso I, CF/88), liberdade, intimidade (artigo 5º, X, CF/88), proibição de discriminação (artigo 3º, inciso IV, CF/88), ao direito de se ter filhos e planejá-los de maneira responsável (artigos 5º, caput e 226, parágrafo 7º, da CF c/c artigo 2º da Lei nº 9.263/96) e, por fim, da própria matriz estruturante do Estado Republicano de Direito: a democracia”.
Fonte: ConJur