*ConJur
A Comissão de Valorização da Primeira Infância e Planejamento Estratégico, liderada pelo TJ-RJ (Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro), assiste a crianças em extrema vulnerabilidade social na cidade do Rio e também, em parte, no município de Nova Iguaçu, na Baixada Fluminense. Algumas ações começaram a ser implantadas em novembro de 2015 e há projetos que beneficiam diretamente filhos de mulheres presas ou moradoras de rua.
O trabalho da comissão estabelece cooperação interna na Justiça e parcerias institucionais para amparar meninos e meninas, alguns ainda no ventre materno, a fim de assegurar direitos e adotar medidas protetivas até os 12 anos de idade. Essas pessoas, tantas vezes sem atenção do Estado, podem entrar no ciclo da exclusão desde o nascimento porque estão sujeitas ao não convívio com os pais, à ausência de cuidados familiares, à falta de registro civil e à eliminação de direitos que essas condições implicam para toda vida.
No TJ-RJ, o trabalho liga o juizado da infância aos sistemas de jurisdição criminal e de execução penal. Além do tribunal, o trabalho mobiliza o Ministério Público, a Defensoria Pública e o Poder Executivo local, as secretarias estaduais de Administração Penitenciária e de Saúde, o Departamento-Geral de Ações Socioeducativas e as secretarias municipais de Assistência Social e de Saúde.
A iniciativa, reconhecida pela primeiro edição do prêmio Prioridade Absoluta, do Conselho Nacional de Justiça, na categoria “Tribunal” e no eixo “Protetivo”, exige grande articulação interna e também externa, “uma costura entre instituições”, como ressalta a juíza Raquel Santos Pereira Chrispino. Ela é uma das responsáveis pelo trabalho da Comissão de Valorização da Primeira Infância e Planejamento Estratégico do TJ-RJ.
“É um projeto muito delicado. É um tecido muito difícil de costurar, precisa ter muita paciência. Está sendo costurado devagarinho. O tribunal é fundamental, mas não vai fazer tudo sozinho. Ele vai conversar com a rede. Exige uma intersetorialidade estrutural, porque não se pode fazer dentro do tribunal só, tem que fazer do tribunal para fora”.
Se no plano institucional a comissão faz a costura junto às pessoas a que atende, o esforço é de coser pontos miúdos, entrelaçar fios soltos e tentar restaurar o tecido familiar e comunitário para garantir o desenvolvimento de uma criança. A costura se dá em situações extremamente delicadas, como em casos de crianças cuja mãe está privada de liberdade. No registro da iniciativa no prêmio do CNJ, a comissão havia assistido a 27 mulheres do sistema prisional, mães de 57 filhos de até 12 anos — e cinco adolescentes aprendidas, mães de cinco filhos.
Marco legal
O trabalho da Comissão de Valorização da Primeira Infância e Planejamento Estratégico atende à Lei 13.257/2016, que dispõe sobre as políticas públicas para a primeira infância. Conforme a legislação, o poder público deve “apoiar a participação das famílias em redes de proteção e cuidado da criança em seus contextos sociofamiliar e comunitário visando, entre outros objetivos, à formação e ao fortalecimento dos vínculos familiares e comunitários, com prioridade aos contextos que apresentem riscos ao desenvolvimento da criança”.
Esse marco legal mudou o Código Processual Penal (Decreto-Lei 3.689/1941) e determina que o juiz deve perguntar na audiência de custódia a acusados sobre “a existência de filhos, respectivas idades e se possuem alguma deficiência e o nome e o contato de eventual responsável pelos cuidados dos filhos, indicado pela pessoa presa”.
“É claro que o legislador não queria que o juiz fizesse essa pergunta e deixasse na gaveta. Existe uma criança no território e precisa ser localizada. O juiz tem que perguntar e tem que fazer alguma coisa com essa informação”, sublinha Raquel Chrispino. “Existe uma criança nesse contexto, ou porque está na barriga da mãe que entrou (na prisão provisória) grávida, ou porque ganhou o bebê dentro do sistema, ou porque ficou do lado de fora quando os pais foram presos. É necessário regularizar a guarda dessa criança”.
No caso das crianças que nascem no sistema prisional, preocupam a comissão premiada pelo CNJ os possíveis impactos familiares, emocionais e até neurológicos no bebê, causados pela separação precoce da mãe e do filho. Esses riscos podem ser diminuídos com a articulação entre Justiça e sistemas prisional e de atendimento à saúde, como ocorre na unidade materno infantil anexa à Penitenciária Talavera Bruce, do Complexo Penitenciário de Gericinó (Bangu VIII).
Situação de rua
Além do acolhimento das crianças filhas de pessoas privadas de liberdade, a Comissão de Valorização da Primeira Infância e Planejamento Estratégico faz a interface entre a Justiça e os sistemas de Saúde e de Assistência Social para atendimento de mães e bebês em situação de rua e em condição de vulnerabilidade.
A articulação se dá para proteger as crianças, assistir à sua saúde após o nascimento, garantir direitos de vínculos dos recém-nascidos com a mãe e, quando necessário, localizar parentes que possam recebê-los e, assim, recuperar laços familiares em benefício dos bebês.
De acordo com a juíza Raquel Chirispino, o objetivo é evitar um drama que ocorre no Rio de Janeiro e em outras cidades brasileiras quando uma mulher moradora de rua é internada no hospital para ganhar o bebê. A criança, cuja mãe não teve assistência médica pré-natal, nasce com a saúde frágil e precisa permanecer hospitalizada após a genitora receber alta. “Não existe equipamento de acolhimento coletivo de mãe e bebê. Na hora que acolhe só o bebê, há o risco de romper o vínculo com a mãe”.
O hospital é obrigado a informar à Justiça sobre o nascimento da criança e as condições de vida da mãe para que se determine o destino da criança após a alta. Além da saúde frágil do bebê, o quadro da mãe, que pode voltar a morar nas ruas, perdeu seus documentos e eventualmente sofre com alguma dependência química, pode levar a decisão judicial no sentido de que o filho não seja entregue à mãe, siga para uma instituição, ou seja confiada provisoriamente à uma família substituta.
O drama relatado pela juíza ocorre quando as mães afastadas querem ficar com seus filhos. Elas procuram a Defensoria Pública, conseguem recuperar a guarda dois ou três anos depois do nascimento, idade em que a criança já tem vínculo com a família substituta. “Nessas decisões, choram criança, mãe biológica, família substituta e o juiz”, conta Raquel.
Segundo ela, o problema poderia ser evitado se, em até duas semanas, as equipes de assistência social pudessem localizar a família da mãe e verificar se há condições de ser acolhida com o bebê pelos parentes. “É preciso de tempo para acessar a família da mãe. Esse nascimento mexe muito com a mãe e a maioria tende a querer sair da rua e criar o filho”.
Pikler e paternidade
A comissão do TJ-RJ ainda atua para capacitar equipes das Varas da Infância e Juventude e equipes técnicas de instituições de acolhimento na abordagem Pikler. Criado pela pediatra húngara Emmi Pikler, o método reconhece e valoriza o vínculo entre a mãe (ou cuidadora) e o bebê, respeita a individualidade da criança e promove a autonomia através da liberdade de movimentos no brincar livre, ao tempo e espaço de cada um, necessários ao desenvolvimento sadio.
A adoção da abordagem tem o propósito de evitar ou, ao menos, minimizar os efeitos produzidos da separação de crianças de suas mães, bem como investir em uma mudança de mentalidade nos cuidados dirigidos a essas crianças.
Outro eixo é a valorização da paternidade. A intenção é conscientizar sobre a importância da presença do pai e da convivência familiar para a primeira infância. O trabalho se faz por meio de atendimento psicológico e realização de oficinas permanentes para famílias e crianças que estão em processo de reconhecimento da paternidade.
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