Em longa entrevista publicada nesta quinta-feira (5) no site do jornal “O Globo”, o presidente do Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro, Milton Fernandes, falou da intervenção federal, do sistema penitenciário, das audiências de custódia e do combate à corrupção. Sobre a magistratura, ele defendeu a valorização dos juízes.
“Todas as carreiras jurídicas e parlamentares ganham várias bonificações acumuladas. Mas só falam da magistratura. Se aviltar, nós não vamos conseguir recrutar gente. Sem um Judiciário forte não há democracia. Nós temos que ter um Judiciário forte, para que seja independente e não fique de pires na mão”, afirmou.
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Leia abaixo a íntegra da entrevista ao “O Globo”:
O Globo: Como o senhor enxerga a intervenção federal em curso na segurança pública do Estado do Rio?
Milton Fernandes: Do ponto de vista jurídico, é constitucional. É um fato. O presidente pode fazer uma intervenção parcial, como o fez, no presente caso, para a manutenção da ordem. Como cidadão, creio que era um anseio de toda a sociedade fluminense, à medida que os órgãos de segurança já não respondiam, seja pelo sucateamento ou pelas condições de trabalho. Deterioração de frota, crise financeira muito grande, sem poder deslocar, falta de combustível, falta de munição, salário atrasado… Tudo isso influencia bastante.
O Globo: No fim do ano passado, o presidente Michel Temer sancionou uma lei que transferiu da Justiça comum para a Militar o julgamento de agentes das Forças Armadas que cometam crimes contra a vida no exercício da função. Como o senhor vê essa mudança, e que tipo de impacto ela pode ter no contexto da intervenção no Rio?
Milton Fernandes: Não posso avaliar porque ainda não sabemos o resultado dessa lei. Pode ser boa ou pode ser ruim. Vamos ter que esperar. No âmbito da intervenção, vamos ter que fazer uma distinção entre o agente federal e o agente estadual. Mas isso simplificando muito, porque pode haver questões conexas, que terão que ser analisadas caso a caso.
O Globo: Fala-se muito que a polícia enxuga gelo, sobretudo no Estado do Rio. Dentro desse contexto, não falta quem defenda mudanças na legislação. Como o senhor avalia esse cenário?
Milton Fernandes: Para dar uma resposta rápida é difícil. Isso é muito amplo. Há alguns aspectos em que poderia haver uma modificação, como por exemplo para o crime de receptação, ou na questão da arma permitida. Essas são situações em que a pessoa é presa com uma arma, e não há indício algum de que vá praticar um crime. Essa pessoa tem que ser solta na audiência de custódia. Não pode ficar presa. Então, você tem pequenas revisões que deveriam acontecer. Agora, sou magistrado há 34 anos e fiquei muito pouco tempo na área criminal. Eu me assessoro de juízes e desembargadores criminais que ajudam na administração dessa área. Não sei se haveria necessidade de uma revisão ampla, de forma a endurecer pena. Acredito que essa não seja a solução ideal. Não adianta encarcerar. O Brasil prende muito, nós temos as estatísticas de encarceramento. Mas não adianta se não tem estrutura de ressocialização, por exemplo. Não vai funcionar.
O Globo: Um relatório do Ministério Público do Rio apontou que, de julho a setembro do ano passado, o percentual de presos que obtiveram liberdade após audiências de custódia no estado caiu quase pela metade (de 62% para 36%). Entre os motivos citados, está a chegada de novos juízes às audiências. Houve alguma orientação ou movimentação com o objetivo de aumentar o rigor dessas decisões?
Milton Fernandes: Não, absolutamente. Não houve movimento algum, nem conversamos com juízes no sentido de fazer isso ou aquilo. Ele decide como acha que deve. O que houve, isso sim, foi uma mudança total no modelo das audiências de custódia no estado. Adotamos o procedimento para todo o Rio. Um centro na capital, outro em Volta Redonda e um em Campos, que pega o Norte do estado. Essas audiências de custódia não são mais realizadas apenas aqui, como acontecia antes. E ocorrem, agora, dentro do complexo prisional. Todos os juízes, os promotores, os defensores públicos… Vão todos para o complexo prisional e fazem a audiência lá. Isso teve várias vantagens. Primeiro: permite que o preso em flagrante seja apresentado nas 24 horas previstas, porque com o sucateamento da frota do estado isso não acontecia. Segundo: impede que presos fiquem circulando pela cidade e diminui o risco de tentativas de resgate. E, por fim, lá se monta uma estrutura com psicólogo, com perícia médica, assistência social… Os juízes se inscrevem e são escolhidos por edital. Antes, eram mais juízes experientes, titulares de varas criminais. Mas todos têm bastante ideia do que fazer, de quem deixar soltar e de quem manter na prisão.
O Globo: O plenário do Conselho Nacional de Justiça (CNJ) liberou recentemente o pagamento adicional para juízes que participam das audiências de custódia. Esses magistrados não acabarão recebendo um valor extra por uma atividade que já faz parte da função de origem?
Milton Fernandes: Vou dizer exatamente o que acontece. Primeiro, o Rio não é o único estado em que o juiz recebe para realizar audiência de custódia. O juiz, quando acumula funções, quando é titular de um lugar e vai trabalhar em outro, ele recebe uma gratificação. É esse valor que os juízes da custódia estavam recebendo. Todos eles, titulares de vara criminal, saíam de seu juízo para acumular a função de juiz de custódia, em local diferente. Por isso, recebiam essa gratificação. Há estados cuja modalidade da audiência de custódia é diferente da do Rio de Janeiro, onde ela é feita pelo próprio juiz criminal. Ele está lá, na vara dele, não sai do lugar, e uma das funções era fazer a audiência de custódia. O que no Rio não era possível porque os presos não eram apresentados, devido ao sucateamento. Isso foi uma ideia muito equivocada que se passou para a imprensa. Tanto que o CNJ permitiu. Colocar um juiz no presídio não é fácil.
O Globo: Ainda a respeito dessas bonificações, está previsto para ser divulgado em breve, no STF, o voto do ministro Luiz Fux sobre uma lei de 2009 que conferiu várias modalidades de benefícios aos magistrados do Rio, tornando o estado recordista nesse tipo de dispositivo. O senhor enxerga algum exagero nesse sentido?
Milton Fernandes: Se as bonificações forem legais, morais e éticas, devem ser recebidas. O Rio não é o estado que paga mais. O GLOBO, quando publicou essa matéria, mostrou que está do meio para baixo. E o Rio de Janeiro talvez tenha um dos custos de vida mais altos. Essa questão da remuneração do magistrado tem que ser muito discutida porque senão vamos aviltar a magistratura. Todas as carreiras jurídicas e parlamentares ganham várias bonificações acumuladas. Mas só falam da magistratura. Se aviltar, nós não vamos conseguir recrutar gente. Sem política não há democracia. Sem Legislativo não há democracia. E sem um Judiciário forte não há democracia. Nós temos que ter um Judiciário forte, para que ele seja independente e não fique de pires na mão. Para que o juiz possa pagar uma escola digna para os filhos, já que infelizmente não temos escola pública, para que possa ter uma moradia só com o salário, sem precisar estar dedicando-se a uma universidade em detrimento da magistratura para poder complementar a renda. Ele pode dar aula, mas não pode ser o principal. Isso é uma discussão muito profunda que está sendo tratada de modo superficial. A imprensa tem um papel importantíssimo nisso. Ela é fundamental na formação da democracia, na formação da opinião pública. Mas tem que ter equilíbrio. Estudem bem essas questões. É lógico que houve abusos, não vou dizer que não houve abusos em outros lugares. Mas o Rio de Janeiro não faz isso. Pode ver que está sempre naquele equilíbrio de médio para baixo.
O Globo: O senhor abriu a resposta anterior frisando que existe um aspecto jurídico e um aspecto moral. O senhor considera moral, para usar a mesma palavra, um juiz que tem imóvel próprio, e atua na cidade onde possui esse imóvel, receber em paralelo um auxílio-moradia?
Milton Fernandes: Essa questão está em análise no Supremo. Não posso falar muito. Deixe o julgamento acontecer…
O Globo: Que tipo de contribuição direta o senhor acredita que o Poder Judiciário pode dar no combate à corrupção?
Milton Fernandes: O Judiciário pode colaborar da forma como tem feito. Ele não pode tomar iniciativa. Ele tem que ser provocado. Uma vez provocado, ele pode procurar investigações, atuar em parceria com o Ministério Público, e condenar se for o caso. Aqui no Rio de Janeiro nós temos o exemplo de que está todo mundo preso. Do Legislativo e do Tribunal de Contas. Essa é a forma possível. E acho que isso vai ajudar muito o país.
O Globo: Muitos acreditam, porém, haver uma complacência quando o desvio ocorre dentro do próprio Judiciário, sobretudo por conta da punição máxima ser a aposentadoria compulsória. O senhor concorda com essa afirmação?
Milton Fernandes: Não existe essa complacência. Se for flagrado em crime, e condenado, ele perde o cargo e vai para a prisão. Não tem aposentadoria, não tem nada.
O Globo: Eu me refiro ao âmbito administrativo…
Milton Fernandes: Mas em âmbito administrativo nós não podemos condenar. Não pode demitir. Até pode, mas só por sentença transitada em julgado. Porque o nosso sistema constitucional vigente é assim. Mas eu tenho visto muita gente sendo punida. Outros, não. Porque muitas vezes a história, quando aparece, toma uma proporção que, quando você vai olhar, não era aquilo. Você não pode condenar alguém se não tiver aquela prova (o presidente frisa a palavra “aquela”). Mas tem havido punições pelo Brasil afora. O CNJ tem punido, o Supremo tem punido.
O Globo: No fim do ano passado, houve toda uma discussão sobre a permanência de detentos em presídios federais por mais de dois anos. Qual a opinião do senhor sobre o tema? O senhor considera que o uso de dispositivo, no caso do Rio, é excessivo?
Milton Fernandes: Isso é importante porque afasta os comandos de organizações criminosas. Todos nós sabemos que eles aqui dentro, no próprio estado, têm acesso a formas de comunicação. O afastamento não impede que eles mantenham o comando, mas dificulta.
O Globo: O sistema penitenciário tem registrado um aumento gradativo da evasão nos chamados “saidões” – o salto foi de 0,85%, nas festas de fim de ano em 2014, para 26,4% no ano passado. Como reverter esse quadro? Deveria haver mais rigor na concessão desses benefícios?
Milton Fernandes: Não se trata de rigor. É legal. Tem que obedecer a lei. Da evasão não posso falar, porque é da ordem do poder Executivo. Há, de fato, uma discrepância muito grande de um ano para o outro. Mas a concessão do benefício é lei. O juiz é obrigado a obedecer. Não pode criar o que ele acha é.
O Globo: Mas existem aspectos subjetivos…
Milton Fernandes: Alguns sim. E eles sempre avaliam. Os juízem consideram aspectos subjetivos e objetivos. Mas se o preso tem o direito, ele tem. Paciência, tem que conceder.
O Globo: Na opinião do senhor, qual a solução para a superlotação do sistema carcerário?
Milton Fernandes: Isso exigiria uma série de medidas, mas é tão amplo que fica até difícil dizer. Você precisaria ter uma ressocialização mais efetiva, sendo que com a atual forma em que o sistema penitenciário funciona isso não acontece. Também seria necessária a construção de mais unidades prisionais, algo que dentro da crise financeira não é prioritário para o estado e para a sociedade. Aliás, é um tema que envolve uma restruturação de quase toda a sociedade. Além de um atendimento maior àquelas comunidades, de forma que o garoto pequeno que está lá, quando o pai e a mãe saem para trabalhar, não tenham como referência a pessoa errada.