Judiciário na Mídia Hoje | 24 de outubro de 2016 14:09

Quem ama não mata

* Por Carlos Gustavo Direito / O Globo

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Nas relações de amor não existe dono, e sim parceiros

Na Roma Antiga, aquele que matasse quem lhe trouxe à vida seria punido com o pior dos flagelos. Deixaria de ser considerado humano e, por isso, não poderia ser enterrado, pois a volta à terra é o retorno ao berço da humanitas (húmus). Era, então, colocado dentro de um saco, com a cabeça de um lobo no seu rosto, e jogado junto com os chamados animais das divindades infernais (macaco, galo e serpente) no rio. O condenado por parricídio, assim, morreria como uma besta sem ver a luz. Entendiam os romanos que quem recebeu o amor de nascer não pode retribuir com violência, pois isso não é humano.

A taxa de feminicídio (crime doloso contra a vida das mulheres em razão do gênero) no Brasil é a quinta maior do mundo, segundo os dados da Organização Mundial de Saúde (OMS), com um índice de 4,8 para cem mil habitantes. Em 2015, foi alterado o artigo 121 do Código Penal para incluir como homicídio qualificado, no qual a pena passa a ser de 12 a 30 anos, o crime praticado por razões da condição do sexo feminino quando o mesmo envolver violência doméstica e familiar e menosprezo ou discriminação à condição de mulher. Ora, tal mudança legislativa retrata a triste realidade daqueles que entendem que o amor pode levar à morte.

Nos tribunais do júri, todos os dias assistimos a relatos de réus que acreditam que são os donos das suas amadas e que, por isso, podem dispor inclusive sobre a própria vida delas. Mas isso não é amor!

E não será apenas uma importante alteração legislativa que fará a conscientização de que quem ama não mata. Existe, ainda hoje, infelizmente, no Brasil uma cultura que relaciona gestos de amor com gestos de passionalidade e possessividade. Somente com a mudança de paradigma é que poderemos transformar essa falsa noção de amor. Nas relações de amor não existe dono, e sim parceiros.

O problema há quando, de forma cultural, verifica-se um desequilíbrio nessa relação. E isso ocorre, no Brasil, porque, antes de a relação acontecer, a mulher já é posta como um objeto a ser possuído. E assim a relação já nasce equivocada, pois o suposto “dono” se vê no direito de usar seu objeto como bem entender. Para ele, o amor se transforma numa relação entre dono e objeto. Ele acredita que ama tanto a sua parceira que pode fazer o que quiser com ela. Essa é a realidade daqueles que matam por “amor”, eles veem um objeto no lugar de uma pessoa.

Em grande parte dos interrogatórios dos réus que cometeram um crime doloso contra sua parceira, o que se denota é a transformação da pessoa amada em um objeto, isso pela forma de narrar a história do ocorrido. Muitas das vezes eles (os réus) buscam a empatia dos jurados com frases e posturas culturalmente aceitas e que visam a objetificar a mulher. Isso é triste e trágico, porque retrata ainda um problema geral, e não pontual. Precisamos urgentemente mostrar que o amor só pode ser correspondido com amor, porque isso é a base da sua humanidade. Como entendiam os romanos, transforma-se em uma besta quem mata a pessoa que o ama.

Carlos Gustavo Direito é juiz e professor da PUC-Rio

Fonte: O Globo