*ConJur
Criado para ser o guardião do Direito federal, o Superior Tribunal de Justiça tem cumprido seu papel de uniformizar a interpretação da legislação infraconstitucional, consolidando-se como o Tribunal da Cidadania, segundo o ministro Luis Felipe Salomão. “A corte está lapidando com paixão toda a legislação a partir da Constituição Cidadã de 1988”, resume.
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Ao falar sobre os 30 anos do STJ, comemorados neste domingo (7/4), Salomão voltou ainda mais longe no tempo e lembrou que, em 1965, na discussão sobre a reforma do Poder Judiciário, a proposta então apresentada pelo professor Miguel Reale recebeu apoio unânime dos participantes.
“Decidiu-se, sem maior dificuldade, pela criação de um novo tribunal. Seria criado um único tribunal, que teria uma função eminente como instância federal sobre matéria que não tivesse, com especificidade, natureza constitucional, ao mesmo tempo que teria a tarefa de apreciar os mandados de segurança e Habeas Corpus originários, os contra atos de ministros de Estado e os recursos ordinários das decisões denegatórias em última instância federal ou dos Estados. Assim também os recursos extraordinários fundados exclusivamente na lei federal seriam encaminhados a esse novo tribunal, aliviando o Supremo de uma sobrecarga.”
Relevância jurídica e impacto social
Entre os julgados mais importantes, o ministro destaca que, em 1989, no REsp 196, o STJ fixou a distinção, no Direito Civil, entre concubina, a mulher que vive maritalmente com um homem sem estar com ele casada, e a esposa.
“São assuntos de relevância jurídica e impacto social, com a capacidade de mudar para melhor o mundo que está a nossa volta”, avalia.
Já em 1997, no REsp 70.740, o STJ entendeu que o fato de o genitor já pagar pensão alimentícia aos filhos não impede que eles, se comprovarem que o valor é insuficiente, peçam aos avós paternos uma quantia maior. Para a corte, a responsabilidade dos avós não é sucessiva, e sim complementar.
No julgamento do REsp 154.857, no dia 26 de maio de 1998, se concretizou o princípio da igualdade, registrado na Constituição da República e no Pacto de San Jose de Costa Rica.
Segundo Salomão, a história das provas orais evidencia evolução, no sentido de superar preconceito com algumas pessoas. Durante muito tempo, recusou-se credibilidade a escravos, estrangeiros, presos e prostitutas. Projeção, sem dúvida, de distinção social.
“Os direitos humanos buscam afastar distinção. O Poder Judiciário precisa ficar atento para não transformar essas distinções em coisa julgada. O requisito moderno para uma pessoa ser testemunha é não evidenciar interesse no desfecho do processo. Isenção. Assim se concretiza o princípio da igualdade, registrado na Constituição da República e no Pacto de San Jose de Costa Rica”, explica.
Nos anos 2000, 12 anos após a promulgação da Constituição Federal, a corte fixou, no REsp 249.026, que é possível o levantamento do FGTS para fins de tratamento de portador do vírus HIV. “A Constituição Federal é a maior garantidora do direito à saúde, à vida e à dignidade humana e levando-se em conta o caráter social do fundo, que é, justamente, assegurar ao trabalhador o atendimento de suas necessidade básicas e de seus familiares.”
Em 2005, a Lei Ambiental, regulamentando preceito constitucional, passou a prever, de forma inequívoca, a possibilidade de penalização criminal das pessoas jurídicas por danos ao meio ambiente.
A corte fixou, no REsp 610.114, que a responsabilização penal da pessoa jurídica pela prática de delitos ambientais advém de uma escolha política, como forma não apenas de punição das condutas lesivas ao meio ambiente, mas como forma mesmo de prevenção geral e especial.
“A pessoa jurídica só pode ser responsabilizada quando houver intervenção de uma pessoa física, que atua em nome e em benefício do ente moral. A Lei Ambiental previu para as pessoas jurídicas penas autônomas de multas, de prestação de serviços à comunidade, restritivas de direitos, liquidação forçada e desconsideração da pessoa jurídica, todas adaptadas à sua natureza jurídica.”
Direitos iguais
Já em 2011, o STJ reconheceu a legalidade do casamento homoafetivo no REsp 1.183.378, processo em que o próprio ministro Salomão foi o relator.
“O pluralismo familiar engendrado pela Constituição impede que se pretenda afirmar que as famílias formadas por pares homoafetivos sejam menos dignas de proteção do Estado, se comparadas com aquelas apoiadas na tradição e formadas por casais heteroafetivos. O que importa agora, sob a égide da Carta de 1988, é que essas famílias multiformes recebam efetivamente a especial proteção do Estado”, explica.
Em 2015, Salomão firmou o entendimento segundo o qual o condômino inadimplente contumaz pode sofrer outra penalidade além de multa por atraso (REsp 1.247.020) e que a aplicação de multa por comportamento antissocial no condomínio exige direito de defesa (REsp 1.365.279). Ressaltou ser possível a inscrição do devedor de alimentos em cadastro de restrição ao crédito (REsp 1.533.206).
Em 2016, destacou que, na falta de confiança, o cliente pode revogar contrato de advocacia sem pagar multa (REsp 1.346.171). Em outro julgado, no REsp 1.349.188, fixou que as instituições financeiras devem confeccionar em braile todos os documentos necessários para atendimento a clientes com deficiência visual.
No ano de 2017, acolheu a tese da desnecessidade de cirurgia de transgenitalização para a retificação de nome e sexo da pessoa transexual, em virtude da dignidade da pessoa humana, no REsp 1.626.739.
“A citada jurisprudência deve evoluir para alcançar também os transexuais não operados, conferindo-se, assim, a máxima efetividade ao princípio constitucional da promoção da dignidade da pessoa humana, cláusula geral de tutela dos direitos existenciais inerentes à personalidade, a qual, hodiernamente, é concebida como valor fundamental do ordenamento jurídico, o que implica o dever inarredável de respeito às diferenças”, explica.
Também em 2017, no REsp 1.595.731, sobre Direito do Consumidor, registrou ser abusiva a prática comercial consistente no cancelamento unilateral e automático de um dos trechos de passagem aérea por não ter o passageiro se apresentado para embarque no voo antecedente.
Em 2018, restringiu o foro privilegiado de governador aos crimes cometidos durante o exercício do cargo e relacionados à função desempenhada (Apn 866). “O foro especial no âmbito penal é prerrogativa destinada a assegurar a independência e o livre exercício de determinados cargos e funções de especial importância, isto é, não se trata de privilégio pessoal”, diz.