Notícias | 31 de março de 2016 20:13

O Novo CPC e o Sujeito que Não Sabia Jogar Xadrez

Juiz Leonardo de Castro Gomes – 17ª Vara Cível do TJ-RJ

Leonardo

Garry Kasparov, campeão mundial de xadrez entre 1985 e 2000 e por muitos considerados o maior enxadrista de todos os tempos, tinha a capacidade de, intuitivamente, prever até vinte lances futuros no decorrer de uma partida. O mesmo dom tem o norueguês Sven Magnus Carlsen, que se tornou o mais jovem enxadrista a liderar o ranking mundial da história, aos 19 anos, em 2009.

Não se espera façanha próxima de um amador para ter sucesso no jogo milenar que simula uma batalha medieval. A previsão de quatro a cinco lances futuros já garante excelente desempenho, sendo que, ao lendário cubano José Raúl Capablanca, campeão mundial na década de 1920, é atribuída a afirmação de que só previa um único lance, mas que era sempre “o melhor”.

Dadas as complexidades de suas estratégias com inúmeras possibilidades para o desenvolvimento das partidas, o xadrez normalmente é utilizado como exemplo clássico na Teoria dos Jogos, ramo da matemática aplicada que busca a resolução de conflitos humanos através da análise de estratégias racionais diante de fatores diversos.

A jurisdição, como função pacificadora do Estado, tem no processo seu instrumento de ação. Imagina-se que uma boa lei processual seja aquela que possa antever minimamente os passos a serem dados pelos sujeitos do processo, criando regras que facilitem a resolução dos conflitos apresentados.

Por ocasião da nomeação, em setembro de 2009, da Comissão de Juristas presidida pelo Ministro Luiz Fux, então do Superior Tribunal de Justiça, visando a elaboração de um novo Código de Processo Civil, o clamor social indicava a necessidade de medidas que agilizassem a ação da Justiça.

A Lei n° 13.105, de 16 de março de 2015, nosso novo Código de Processo Civil, assim, nasceu sob o mote da celeridade, sem o qual não se justificaria a revolução de todo o sistema processual vigente, na medida em que toda e qualquer iniciativa do Estado legislador só se mostra legítima se apoiada em uma necessidade normativa oriunda de uma demanda social.

Questiona-se, portanto, se o novo Código de Processo Civil se apresenta como instrumento facilitador da celeridade a que se propôs (objetivo inserto em seu artigo 4°) e que por muitos é propagada.

A elaboração deste estudo caminha para conclusão contrária e o faz através da análise das principais inovações implementadas.

De início, é surpreendente que uma lei que propõe imprimir maior celeridade aumente praticamente todos os prazos processuais e, a despeito da simplificação que também a motivou, impõe uma contagem não linear daqueles, computando-se somente os dias úteis.

Não bastasse o contrassenso em relação ao acesso ininterrupto que o processo eletrônico proporciona, as dificuldades impostas ao servidor certificante se acirram com dicotomias nas contagens em relação a prazos não processuais, que permanecem em dias corridos, conforme se extrai do artigo 219 e parágrafo único do novo Código. Por exemplo, o prazo para o réu no processo monitório pagar, de quinze dias, por se tratar de ato da parte, de cunho eminentemente material, conta-se em dias corridos. Já para os embargos monitórios, embora facultada sua oposição naquele mesmo prazo (CPC, artigo 702), a contagem há de ser em dias úteis, dada a sua natureza processual. E voilà! A lei que busca a simplicidade do processo acaba por criar hipótese em que dois prazos iguais, correndo paralelamente e com o mesmo termo inicial, terão termos finais distintos.

O argumento da simplificação também não se coaduna com inovações meramente formalísticas trazidas pelo novo processo. O artigo 473 faz prever um roteiro para a elaboração do laudo pericial, regra outrora inexistente, abrindo margem para arguições de nulidade independente de aquele ser suficiente para dirimir a questão técnica envolvida. Por outro lado, restou revogada a norma do artigo 459 do CPC de 1973, que possibilitava a prolação de sentença de forma concisa nas hipóteses em que não houvesse resolução de mérito.

A lei se arvora imprudentemente em assuntos administrativos, em franco prejuízo da análise da conveniência e oportunidade, inclusive impondo ao Judiciário quantitativo mínimo de oficiais de justiça (artigo 151), apesar de o processo eletrônico sugerir a redução de suas tarefas diante da automação dos meios de comunicação dos atos.

Quer parecer, contudo, que a falta de visão administrativa do legislador atingiu seu ápice na redação original dos artigos 12 e 153 do novo Código, que impunham respectivamente ao julgador a ordem cronológica de conclusão para proferir sentença ou acórdão e ao escrivão ou o chefe de secretaria a ordem cronológica de recebimento dos autos para publicação e efetivação dos pronunciamentos judiciais.

 A observância rígida da ordem de conclusão para julgamento acarreta um aumento médio do prazo de conclusão, eis que impossibilita o pronto julgamento de processos mais simples, ademais de dificultar ao extremo a distribuição de feitos entre assessores de juízes para a elaboração de minutas. Problema similar haveria no processamento de acordo com o primitivo artigo 153. Tais regras comprovam que o legislador do novo Código foi incapaz de perceber um simples contexto de ação e efeito. Em boa hora, a Lei n° 13.256/2016, ao incluir o vocábulo preferencialmente em ambos os artigos, minimizou o dano, embora ainda deixe margem para questionamentos.

O novo Código estimula a conciliação, a mediação e outros métodos de solução consensual de conflitos (artigo 3°, § 3°). A conciliação já vinha contemplada no Código de 1973, com especial enfoque a partir da Lei n° 8.952/1994, de maneira que a inovação recai especificamente sobre a utilização de métodos de mediação no âmbito processual, salientando que, pelo rito único, tais meios de autocomposição serão tentados de início, em uma audiência preliminar.

Não se negam as vantagens da mediação para a solução de conflitos, dados os ensinamentos que deixa e o caráter multiplicador que exerce sobre as pessoas participantes para o enfrentamento de conflitos futuros. Questiona-se, porém, o proveito de tais métodos em âmbito judicial. Ocorre que o processo exige a constituição de advogado e o perfil do profissional atuante em nosso país desfavorece a autocomposição. O profissional do direito no Brasil é formado na cultura do contencioso, que seria mais facilmente mudada se a mediação ocorresse extrajudicialmente, fora do ambiente de guerra para o qual foi preparado para lutar. Assim se dá na Argentina (Lei 26.589/2010), de forma consideravelmente exitosa. Ao trazer a mediação para o ambiente judicial, o legislador corre o risco de desperdiçar valoroso instrumento para a solução consensual de conflitos, sendo facilmente previsível que as audiências preliminares a serem designadas se transformarão em mero ato pró-forma.

A figura do negócio processual prevista no artigo 190 definitivamente não se trata de um facilitador da jurisdição. Pelo contrário. A potencial multiplicação de ritos pela via do negócio processual prejudica a otimização de rotinas judiciárias, que deverão se ater a possíveis peculiaridades nos milhares de processo em trâmite perante cada juízo.

O que mais preocupa no novo processo, contudo, é a sensível mitigação de todo o sistema de preclusão, que no Código anterior era pautado pela recorribilidade das decisões interlocutórias. A restrição das hipóteses de cabimento do agravo de instrumento é salutar, mas não se compreendem os motivos que levaram ao fim do agravo retido. Tal recurso era indolor para o bom andamento do processo e propiciava um caminhar para frente na relação processual, de maneira que as decisões irrecorridas se tornavam preclusas, permitindo a superação contínua de controvérsias e o afunilamento de questões remanescentes. Pela nova lei, todos os despachos poderão ser impugnados por ocasião da apelação, desde o cite-se até o venham conclusos para sentença, eventualmente causando o retorno do processo a estágios processuais já ultrapassados.

A estratégia não parece ser boa e são inúmeros os inconvenientes que se vislumbram. Vale dizer, a decisão acerca da competência de juízo é irrecorrível. Se proferida no despacho inicial e posteriormente revista em sede de apelação, toda a fase de conhecimento será repetida. Também é irrecorrível a fixação dos honorários periciais. Aquele que proceder ao depósito poderá sempre rediscuti-los na apelação, eventualmente provocando a execução forçada em face de peritos que levantaram honorários posteriormente reduzidos.

Ainda sobre a propagada diminuição das vias recursais, os embargos infringentes acabaram substituídos por um mecanismo de ampliação de colegiado de incidência ainda mais abrangente, para o qual, diferentemente daquele recurso extinto, é desinfluente a decisão de primeiro grau no acórdão não unânime (artigo 942). Ou seja, ao invés de se otimizar a ordem dos processos no Tribunal, haverá a multiplicação de incidentes.

O novo processo, a todo instante, busca dar uma nova chance ao demandante. Isto se vê quando do redirecionamento do processo cuja contestação alegue ilegitimidade passiva; no preparo da apelação (artigo 1007, § 4°) e na ampliação de prazos para a ação rescisória, tanto em relação à prova nova (artigo 975, § 2°) quanto na hipótese de decisão fundada em lei ou ato normativo considerado inconstitucional pelo Supremo Tribunal Federal (artigo 525, § 15), o que praticamente ceifa o conceito que se tinha da coisa soberanamente julgada.

Este último caso é gravíssimo, haja vista que estamos às vésperas do julgamento da constitucionalidade dos planos econômicos. Centenas de milhares de casos poderão ser reabertos pelos bancos caso se saiam vencedores.

A lei faz isso em nome da segurança jurídica, mas o excesso de mecanismos não preclusivos depõe contrariamente àquela e certamente inviabiliza a almejada celeridade processual.

Também em nome da segurança jurídica a Lei n° 13.105/2015 prevê um contraditório incidental no procedimento para penhora de valores bancários, a chamada penhora on line, abrindo prazo para o devedor se pronunciar acerca da ordem de bloqueio antes que se faça a transferência para conta judicial.

Ocorre que, enquanto não são transferidos, os valores bloqueados permanecem congelados, sem nenhuma remuneração, diversamente do que acontece quando em depósito judicial. Somados os cinco dias úteis de prazo do executado para se manifestar aos cinco dias úteis da parte contrária para resposta, além do trâmite natural do processamento cartorário, a transferência, que no sistema anterior levaria no máximo 72 horas, atualmente poderá levar um mês ou mais para ser feita. Quão maior o valor bloqueado, mais significativas serão as perdas para ambas as partes. Novamente os bancos são agraciados pelo novo processo, vez que a instituição financeira originária poderá aplicar a quantia contabilmente congelada no mercado interbancário, lucrando com a medida.

Fora isso, abre-se a discussão sobre a quem caberia o ônus da perda. Estaria o devedor liberado da dívida por ocasião da indisponibilidade de seus recursos por força do ato judicial constritivo ou poderia o credor haver encargos intercorrentes?

Estivesse prevista a transferência imediata, eventual excesso poderia ser posteriormente dirimido com a preservação do valor da moeda.

Questiona-se igualmente o motivo para o fim do juízo de admissibilidade da apelação pelo juízo de primeiro grau. A novidade se justificaria se a interposição do recurso se desse diretamente em segunda instância, o que é plenamente factível com o avanço do processo eletrônico. Mantendo-se a interposição em primeira instância, contudo, são diversas as possíveis consequências indesejadas. Poderá haver a interposição de apelação contra decisão interlocutória, provocando a paralisação da fase de conhecimento para remessa do feito ao tribunal. Pior, poderá haver a interposição de apelação contra sentença transitada em julgado, às vésperas de um leilão. O reconhecimento do dolo processual e a aplicação das penas por litigância de má-fé a posteriori é medida insuficiente para o estrago causado.

Como se vê, o novo Código oferece um campo largo para a atuação demandista.

O termo demandismo é empregado para caracterizar o ajuizamento de processo como um fim em si e não com o intento de pacificação de um conflito.

Este é, sem dúvida, um dos maiores problemas da jurisdição atual, não sendo exagerados os prognósticos que calculam em até 25% o número de demandas ajuizadas perante juízos cíveis e juizados especiais cíveis com o respectivo desvirtuamento. Buscasse o legislador efetivo combate à morosidade, trataria de reduzir as margens processuais que possibilitam e fomentam o demandismo.

É de constatação geral que o demandismo ocorre principalmente em razão da atuação de escritórios de advocacia motivados pela expectativa dos honorários contratuais e sucumbenciais. É igualmente notório que a prática encontra terreno fértil nas camadas mais carentes da sociedade, através da sedução por um proveito financeiro oriundo de algum incidente consumerista.

Na medida em que tais incidentes trazem baixo valor relativo e que os honorários são calculados proporcionalmente ao proveito econômico obtido, os pedidos são formulados de maneira a intensificar seu conteúdo econômico. Para tanto, os demandistas se valem de dois subterfúgios de valor originalmente intangível: a indenização por danos morais e as astreintes.

Neste sentido, a prática demandista, de regra, visará o enriquecimento através dos institutos dos honorários advocatícios, dos danos morais e das astreintes. Vislumbram-se outros institutos, tal como a gratuidade de justiça, mas tenho que esta se cuida de mera ferramenta para o alcance daqueles objetivos.

E o que fez o legislador de 2015?

Vejo aqui uma inovação positiva, especificamente em relação aos danos morais, a depender da interpretação que se fizer do artigo 292, V, do CPC, que passou a exigir a quantificação do valor reparatório pretendido. Caso se entenda como prejudicada a Súmula 326 do STJ (Na ação de indenização por dano moral, a condenação em montante inferior ao postulado na inicial não implica sucumbência recíproca), é possível que a nova regra sirva de desestímulo para demandas reparatórias infundadas.

No entanto, a lei é extremamente generosa na disciplina dos honorários advocatícios (haja vista os 19 parágrafos de seu artigo 85) o que fará com que se tornem comuns os casos em que a remuneração do profissional seja mais significativa que a própria tutela que motivou o ajuizamento da demanda, subvertendo a lógica do principal versus acessório. Aliás, qual advogado estimulará a autocomposição quando a continuação do processo lhe oferece inúmeras possibilidades de remuneração pessoal?

A nova lei também generaliza o cabimento de astreintes, permitindo que seja aplicada no cumprimento de condenação por quantia certa, e tenta blindá-la contra decisões que buscam seu ajuste retroativo quando aquela se mostrar excessiva, haja vista o emprego do termo “multa vincenda” no parágrafo primeiro do artigo 537.

Não resta dúvida que o credor preferirá a multa ao cumprimento da tutela específica, postergando à eternidade a solução do conflito que motivou a demanda.

Por último, são preocupantes possíveis desdobramentos do incidente de resolução de demandas repetitivas. Dado o efeito suspensivo que propicia, é fácil vislumbrar que servirá de subterfúgio para a paralisação dos processos contrários aos interesses do requerente. Pior, a abrangência de seus efeitos possibilita a legitimidade de cada parte afetada. A depender do alcance da questão envolvida, poderemos ter milhares de interessados peticionando e milhares de legitimados interpondo recurso especial que, nesta hipótese, também terá efeito suspensivo. Ou seja, uma demanda que, pelo moribundo rito sumário, poderia ser julgada tranquilamente em quarenta dias, poderá levar, de acordo com a fórmula perversa daquele incidente, uns cinco anos para ser solucionada, ou mais.

Um exemplo do perigo que representa o IRDR está na interpretação do prazo previsto no artigo 523. Há os que o consideram um prazo processual, exigindo a contagem em dias úteis, e há aqueles que o têm como prazo material, contado em dias corridos. O recebimento de um incidente de resolução de demandas repetitivas acarretará, em um primeiro momento, a paralização de todas as execuções de sentença no Estado e, em um segundo momento, com a interposição de um recurso especial, a suspensão de todos os cumprimentos de sentença em território nacional. Aqui, temos a potencialização de dois equívocos estratégicos do novo Código quando acumuladamente considerados: a distinção na contagem de prazos processuais e materiais e o efeito suspensivo abrangente do incidente de resolução de demanda repetitiva.

Superada a primeira geração de controvérsias jurídicas, admite-se que o IRDR poderá efetivamente conferir celeridade à jurisdição, na medida em que suas decisões evitarão o ajuizamento de demandas análogas. Contudo, dificilmente se chegará a tal estágio em menos de uma década. Até lá, o congestionamento causado poderá comprometer o funcionamento do Judiciário pela década seguinte. Pergunta-se, pois, se a sociedade estará disposta a aguardar vinte anos de morosidade para enfim colher os frutos da novidade. Questiona-se, igualmente, se efeito prático equivalente já não seria alcançado pelo posicionamento ordinário da jurisprudência, que, na medida em que se consolida, já orienta as iniciativas processuais acerca de temas enfrentados nos tribunais e em suas Súmulas.

Os efeitos deletérios do novo processo para a celeridade permite a previsão racional de duas possibilidades. Ou a Lei n° 13.105/2015 passará, em futuro próximo, por uma série de reformas, ou haverá uma migração natural das demandas para os Juizados Especiais Cíveis, causando uma falsa sensação de diminuição da litigiosidade nas varas cíveis.

Muitas das falhas estratégicas do novo Código poderão ser contornadas com manobras hermenêuticas. Estudos desenvolvidos por juízes cíveis em reuniões do Centro de Estudos e Debates do Tribunal de Justiça do Estado do Rio de Janeiro (CEDES) ao longo do ano de 2015 resultaram na elaboração de 108 enunciados que buscam dar viabilidade mínima ao novo processo.

Naquela ocasião, houve o consenso no sentido da possibilidade de transferência imediata de valores bancários bloqueados para conta judicial, dada a total incompatibilidade do artigo 854 do novo CPC com o sistema Bacenjud (Enunciado 94). Já o Enunciado 104 permite que o juízo de primeira instância deixe de processar apelação com vício evidente. Por sua vez, o Enunciado 80 reconhece a possibilidade de o juiz reduzir o valor ou modificar a periodicidade da multa cominatória vencida, se não houver decisão anterior preclusa que a consolide.

Neste sentido, é crucial o posicionamento jurisprudencial neste primeiro momento de vigência do novo Código. É possível, por exemplo, que os incisos do artigo 976 do CPC sejam interpretados no sentido do cabimento do IRDR somente em relação a questões de direito material, vedada sua incidência em relação às controvérsias jurídicas geradas a partir da própria lei processual.

O risco a que o legislador submeteu o novo processo foi, em todo caso, de todo imprudente. Não houve, aqui, a racionalização das estratégias à luz das possibilidades futuras na sua aplicação, tal como sugere a Teoria dos Jogos.

Quer parecer, assim, que, em algum momento de seu processo legislativo, mexeu nas peças um sujeito que não sabia jogar xadrez.