A edição de sábado (30) do jornal “O Globo” trouxe o artigo “Noivas cadáveres”, escrito pelo desembargador Wagner Cinelli, do Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro. No texto, o magistrado aborda a violência contra a mulher. “Precisamos desnaturalizar a violência”, ressaltou.
Wagner Cinelli estudou desigualdade de gênero durante o mestrado na London School of Economics (LSE), no Reino Unido. O desembargador é autor do livro “Sobre Ela: uma história de violência” e diretor do curta-metragem de animação “Sobre Ela”, que trata da violência contra a mulher.
Noivas cadáveres
Ainda está vivo na memória do brasileiro o assassinato da juíza Viviane Vieira do Amaral Arronenzi, morta na véspera de Natal pelo ex-marido na frente das três filhas. Infelizmente, a contagem macabra não para. Semanas depois, novos casos de feminicídio chocaram o país. A imprensa noticiou a história de duas jovens que, em menos de 12 horas, foram assassinadas no Estado do Rio de Janeiro. Uma jovem de 29 anos, em Teresópolis, e uma adolescente de 14 anos, em Paraty, perderam a vida covardemente.
O noticiário não tem como antecipar o futuro, mas sabemos de antemão que, ao longo deste ano, muitas outras mulheres serão vítimas de feminicídio praticado por atuais ou ex-companheiros. Reunir e analisar dados estatísticos sobre a violência de gênero não é tarefa fácil, seja pela taxa de subnotificação, seja por outras questões metodológicas.
Estudos mostram que a violência contra a mulher cresceu durante a pandemia. No Brasil, em 2020, durante os meses de maior isolamento social, entre março e junho, houve um aumento de 16% no número de feminicídios, em comparação a igual período de 2019.
Infelizmente, o problema não é novo e já vinha crescendo mesmo antes da pandemia. O Observatório de Igualdade de Gênero, da Comissão Econômica para a América Latina e Caribe, em estudo sobre número de mulheres assassinadas por motivo de gênero no ano de 2017, apontou que, no Brasil, foram 1.133 vítimas, ou seja, três por dia. Pesquisa do Senado Federal, de 2015, mostrou que 20% das mulheres no Brasil já foram espancadas pelo marido, companheiro, namorado ou ex. Provavelmente os números são maiores do que aqueles registrados nas estatísticas, pois muitos casos de violência que ocorrem nos lares nem sequer são notificados.
Relatos de mulheres vítimas indicam que o comportamento abusivo do parceiro aparece e cresce ao longo do relacionamento. Se fosse revelado no primeiro beijo, muita tragédia seria evitada, mas não é assim que acontece. O tempo é a testemunha silenciosa da deterioração dessa relação afetiva. Surgem agressões ou dominações menores, que vão se tornando mais frequentes e mais gravosas com o passar dos dias, meses e anos.
Como o primeiro passo para equacionar um problema é ter a consciência de que ele existe, é necessário falar sobre esse assunto. Falar sobre ela-vítima e também sobre ele-agressor. O debate público é fundamental. Juntamente com as alterações na lei penal que certamente advirão, precisamos de várias outras ações, dentre elas a popularização do número da Central de Atendimento à Mulher: o 180 necessita ser tão conhecido quanto o é o 190 da Polícia Militar.
Precisamos desnaturalizar a violência, o que significa tomar providências sempre que a encontrarmos, sob pena de nossa omissão contribuir para a perpetuação desta fábrica de homens agressivos, que transformam lares em casas de tormenta e amadas em noivas cadáveres.
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