O site do jornal “O Globo” divulgou, nesta segunda-feira (20), artigo do desembargador do TJ-RJ (Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro) Ricardo Rodrigues Cardozo. No texto, o magistrado lembra as mudanças no Judiciário nos últimos tempos e, em especial, durante o período de isolamento social decorrente da pandemia do coronavírus.
Leia abaixo a íntegra do artigo:
Justiça pós-pandemia
Recordo-me perfeitamente bem daquele ano. Era janeiro de 1988 quando fiz a primeira audiência após assumir a magistratura. À minha direita sentava-se o promotor de Justiça e à esquerda estava um escrevente, funcionário incumbido de registrar todos os acontecimentos, mas sob meu ditado, datilografando numa velha Remington.
Pilhas de processos aguardavam o meu exame. Chegava pela manhã ao modesto Fórum do interior. Parava para o almoço. As audiências iniciavam-se às 13h. Não havia hora para terminar. Depois vinham os despachos e decisões. Nos fins de semana, reservava para a prolação das sentenças mais complexas.
Assim era a vida de um juiz daquele tempo.
Era um outro mundo. Era a época da máquina de datilografia, do ditado do juiz, dos processos de papel. Computador não havia. Internet, nem sonhar.
Se a pandemia tem seu lado triste e cruel pelos sofrimentos que trouxe à sociedade, naturalmente insuperáveis, sob um outro aspecto se pode enxergar novos caminhos, certamente bons. Falo especialmente sobre a Justiça, pois as mudanças vieram para ficar.
É bem verdade que ao longo do tempo as transformações foram ocorrendo, mas não tão rápidas como a que se impôs em razão da pandemia. A Justiça não podia parar, e o modo de fazê-la teve que ser repensado de forma a conjugar eficiência com o respeito ao isolamento social.
A digitalização dos processos que já havia se iniciado teve que ser acelerada, pois só assim seria possível examiná-los à distância. Os julgamentos deixaram de ser presenciais para serem virtuais. Os advogados passaram a fazer a sustentação oral por meio de videoconferência. As plataformas virtuais passaram a ser utilizadas para as reuniões, para os cursos à distância e para permitir que os advogados pudessem despachar com o julgador.
Esta transformação acarretou um acentuado aumento na prolação de sentenças e decisões. Mais julgamentos estavam ocorrendo. Era o trabalho à distância que estava permitindo o aumento da produtividade.
Este novo movimento gerou a percepção de que é possível, ainda que em áreas notoriamente conservadoras, implementar mudanças, mediante a utilização das novas tecnologias disponíveis.
O trabalho à distância impõe disciplina, cumprimento e controle de metas de produção. Poupa tempo e traz economia para o Erário. Grandes espaços deixarão de ser necessários. A utilização de material de consumo, de energia e de serviços em geral deverá ser revisto para menos.
Aquele mundo de magistrados togados, andando pelos corredores de um tribunal solene, será substituído por julgadores que estarão em seus lares, produzindo tanto ou mais do que se estivem presentes no local de trabalho.
Evidentemente, não será possível ou recomendado que alguns atos judiciais sejam feitos à distância. Audiências instrutórias na primeira instância, por exemplo, continuarão presenciais, apenas porque, numa sociedade disforme, carente e desigual, não se pode exigir que todos tenham um computador ou acesso à internet. Talvez alguns procedimentos de conciliação e mediação, especialmente na área de família e infância, sejam melhores tratados se conduzidos presencialmente por um julgador.
Mas é bom que todos se acostumem a esse novo tempo da Justiça. Não ver o juiz no Fórum não significa que não esteja trabalhando. O que a sociedade deve esperar e exigir é a transparência, para que possa acompanhar a produção e as metas fixadas, além de dispor de um canal de comunicação eficiente.
Sinto apenas um saudosismo ao pensar no calor humano que acaba ficando para trás, de verificar como raros serão os encontros nos corredores e as conversas nos intervalos das sessões. Mas o que fazer? A vida segue adaptando-se aos novos tempos.