O jornal “O Dia” e o site “Consultor Jurídico” (ConJur) divulgaram, em 27 de dezembro, artigos de autoria do desembargador Wagner Cinelli, do Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro (TJ-RJ). Os textos “O Caso ‘Márcia Barbosa’ e a razoável duração do processo” e “O direito de acesso das mulheres com deficiência” abordam a violência contra a mulher.
Wagner Cinelli é autor do livro “Sobre ela: uma história de violência” e diretor do premiado curta-metragem de animação “Sobre Ela”. Confira abaixo os artigos:
O Caso ‘Márcia Barbosa’ e a razoável duração do processo
Jovem estudante, de 20 anos, é encontrada morta com sinais de asfixia em um terreno baldio. Seu nome, Márcia Barbosa de Souza. O crime ocorreu em 17 de junho de 1998, em João Pessoa, na Paraíba, e o suspeito era o deputado estadual Aércio Pereira de Lima, que foi processado, vindo a ser condenado a 16 anos de reclusão. Essa breve narrativa tem por trás detalhes que expõem disfuncionalidades.
A primeira delas decorre da imunidade parlamentar. A Constituição da República (CRFB), em razão da Emenda Constitucional 35/2001, restringiu o alcance desse instituto. Mas perdura a necessidade de licença da Casa Legislativa para o seguimento da ação penal contra o parlamentar, mesmo em caso de assassinato. Não sendo concedida a licença, a ação penal fica suspensa.
Essa regra é repetida nas Constituições estaduais e, graças a ela, o deputado Aércio conseguiu obter a suspensão da ação penal na qual era réu. Como foi reeleito no pleito de 1998, a suspensão se estendeu pelos quatro anos do que veio a ser seu último mandato.
A segunda disfuncionalidade é fomentada pela primeira, que foi o largo tempo decorrido entre o assassinato da estudante, em 1998, e o julgamento pelo Tribunal do Júri, em 2007, a indicar violação a dispositivo constitucional: “A todos, no âmbito judicial e administrativo, são assegurados a razoável duração do processo e os meios que garantam a celeridade de sua tramitação” (Artigo 5º, inciso LXXVIII, da CRFB).
Aércio, em fevereiro de 2008, morreu em sua residência, vítima de infarto. Nunca cumpriu a pena a que foi condenado e, diante desse quadro, o Centro pela Justiça e o Direito Internacional (Cejil) e o Movimento Nacional de Direitos Humanos (MNDH) apresentaram petição perante a Comissão Interamericana de Direitos Humanos (CIDH).
A CIDH admitiu parcialmente a petição e apresentou o “Caso Márcia Barbosa” à Corte Interamericana de Direitos Humanos (Corte IDH), advindo sentença com recomendações ao Estado brasileiro, entre elas: adequar a lei brasileira para que a imunidade de altos funcionários do Estado fique adstrita aos fins a que se destina, evitando-se que se transforme em obstáculo para a investigação de casos de violações de direitos humanos; e continuar adotando todas as medidas necessárias para o cumprimento integral da Lei Maria da Penha e dispor de todas as medidas legislativas, administrativas e de políticas públicas para prevenir, investigar e punir a violência contra a mulher no Brasil.
Márcia foi morta porque era mulher. Mais uma entre tantas vítimas desse terrível crime de gênero que é o feminicídio, a reclamar especial atenção do Estado brasileiro.
Assim como o “Caso Maria da Penha” deu nascimento à Lei 11.340/2006 (Lei Maria da Penha), que é um marco em favor das mulheres vítimas de violência doméstica, o “Caso Márcia Barbosa” certamente trará mais efetividade à lei e, portanto, maior proteção às mulheres.
Precisamos desses novos mecanismos para a plena realização do princípio da razoável duração do processo e consequente desestímulo à prática de crimes como o que vitimou Márcia Barbosa. Que o cumprimento da sentença da Corte IDH venha logo!
O direito de acesso das mulheres com deficiência
“Que toda mulher deficiente tenha acesso à Justiça e aos serviços públicos” (trecho do poema Ser Mulher, da juíza Adriana Ramos de Mello)
Graças a muitas lutas, as mulheres conseguiram vencer barreiras sociais e conquistaram direitos, como estudar, votar e trabalhar. Mas a desigualdade persiste e é ainda maior para as mulheres com deficiência.
A ONU aponta que meninas e mulheres com deficiência são alvos preferidos de abusadores e alguns dos motivos são: vivem uma exclusão social, têm mobilidade limitada, não dispõemde estrutura de apoio, enfrentam barreira para comunicação e sofrem estigmas sociais.
Observemos o que foi investigado a respeito do assunto no Reino Unido, que tem reconhecida experiência em estudos e pesquisas sobre criminalidade.
A estatística criminal da Inglaterra e do País de Gales é levantada pelo British Crime Survey, que existe desde 1982 e é usado pelo governo britânico no desenvolvimento de políticas para redução da criminalidade. Em recente publicação, foi apurado que 17,5% das mulheres com deficiência tinham sido vítimas de violência doméstica, ao passo que, quanto às demais, esse percentual foi de 6,7%. Essa pesquisa considerou o período de abril de 2019 a março de 2020 e confirmou o que já tinha sido revelado em enquete anterior: mulheres com deficiência têm mais que o dobro de risco de sofrerem violência doméstica.
Embora não tenhamos a tradição dos britânicos, o Atlas da Violência 2021 traz informações importantes sobre a realidade brasileira, revelando que mulheres são a maioria das vítimas de violência para qualquer tipo de deficiência e que a violência mais frequente para pessoas com deficiência é a doméstica. Portanto, tem-se que, no Brasil, mulheres que apresentem algum tipo de deficiência têm maior risco de sofrerem agressões no âmbito da unidade doméstica ou familiar, assim como em qualquer relação íntima de afeto na qual o ofensor conviva ou tenha convivido com a ofendida.
Assim, o agressor pode ser o cônjuge ou companheiro, um familiar ou mesmo alguém que supostamente estaria ali para “cuidar” da pessoa com deficiência.
A título de ilustração, vejamos notícias envolvendo cada uma dessas situações.
A primeira é sobre um ex-marido abusador, cuja manchete é: “Homem é condenado por rotina de agressões físicas à ex-mulher deficiente”. Refere-se a uma ação de indenização por dano moral que teve sentença condenatória confirmada pela 4ª Câmara de Direito Privado do Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo.
O segundo caso é de um pai abusador. A notícia, assinada por Aline Nascimento (G1), dá conta de que um agricultor do interior do Acre foi condenado a 41 anos de prisão por abusar e engravidar duas vezes a filha com deficiência mental.
O terceiro episódio, também do G1, é sobre uma cuidadora condenada a quase 10 anos de prisão, em regime fechado, por agressões a uma mulher com deficiência mental em Rio Negrinho (SC).
A Justiça deu resposta aos três casos de violência doméstica referidos, como dá a muitos outros. Porém, um grande número nem mesmo chega à cognição das instituições, o que ocorre por várias razões, mas que pode ser resumido em uma palavra: acesso.
Decerto que o tipo de deficiência influenciará o acesso dessa vítima às instituições que lhe devem proteção. A pessoa com algum tipo de impedimento cognitivo, por exemplo, se não encontrar uma escuta qualificada, corre o risco de ter seu depoimento descredibilizado. Outro grupo que demanda especial atenção é o das mulheres surdas, que não têm como se valer de linhas telefônicas de ajuda. Como costumam se comunicar em libras, dependem de interlocutor que conheça essa linguagem, que, infelizmente, não é tão difundida. Essa situação é agravada pela ausência de instrumentos que, de forma segura, as possibilitem reportar os delitos que lhes atingem.
A violência de gênero existe, é grave e tem incidência ainda mais acentuada no grupo das mulheres com deficiência, que, como indica a juíza Adriana Mello, necessita de acesso à Justiça e aos serviços públicos. Seguir por essa trilha permitirá o resgate dessa enorme dívida social, o que certamente fará de nosso mundo um lugar mais inclusivo e menos desigual.