Notícias | 29 de janeiro de 2015 13:15

O consumidor e as obras de arte

* Peterson Barroso Simão
Desembargador do TJRJ

Em um prato da balança encontra-se a frase de Oscar Wilde: “vivemos numa época em que coisas desnecessárias são as nossas únicas necessidades”. No outro, talvez com maior razão, as frases de Goethe: “O homem deseja tantas coisas, mas precisa de tão pouco” e de Chico Xavier: “Graças a Deus aprendi a viver apenas com o necessário”.

Independente de saber qual prato pesa mais, não podemos esquecer que consumir com moderação faz parte do cotidiano e comprar objetos de arte, inclusive uma balança antiga, além de servir de adorno, possui valor econômico, conta a história da humanidade, embeleza, tendo finalidade cultural para os povos. Traz leveza, suavizando a vida.

Dar alegria, tocar a alma e o pensamento de forma positiva, fascinando e entusiasmando é o verdadeiro significado da pintura e dos objetos de arte em geral. É por isso que surgiram concomitantemente com a civilização, ganhando realce, valor econômico e comercialização.

Hoje são frequentes os leilões de arte em todas as metrópoles, galerias e antiquários, sobretudo, no que se referem aos quadros, esculturas de bronze, de barro, livros raros, móveis de época, etc.

Concernente às pinturas a óleo sobre tela, foi a leilão um quadro muito antigo, figura de jovem, danificado, sem assinatura exposta, precisando de restauro.

Por preço módico, que não ultrapassou o valor da avaliação, foi comprado. No site do leilão constavam duas descrições: uma individualizada – “óleo sobre tela sem assinatura”; outra generalizada: “os objetos serão vendidos no estado, não aceitando reclamação”.

O olhar pensativo da jovem fez com que o comprador ficasse bastante satisfeito com a aquisição e, sendo muito antigo, foi levado à restauração. Durante a limpeza, foi saindo aquela crosta de verniz e a tela foi clareando como originalmente fora produzida.

Surpresa ocorreu – surgiu finalmente um nome no canto inferior direito. Reavaliado, constatou-se que a figura de rosto foi pintada no século XVIII e o europeu que a pintou é um artista mundialmente consagrado. Fato semelhante ocorre também com alguns quadros em que a assinatura é dada como ilegível, mas posteriormente se descobre o autor.

A sorte do adquirente chegou aos ouvidos do leiloeiro, de seu avaliador e depois, a quem consignou a peça para ser vendida.

Considerando a enorme desproporcionalidade do valor entre o mesmo quadro, antes e depois da limpeza e restauração, originou-se um conflito de interesses com a pessoa que consignou a obra, o leiloeiro, o avaliador e o arrematante.

Em favor de quem vendeu, pode-se entender que houve erro substancial sobre a qualidade do objeto da compra e venda, o que caracterizaria um negócio jurídico anulável, nos termos do art.139, inciso I, do Código Civil. Neste caso, o desfazimento do negócio deve ser pleiteado no prazo de quatro anos a contar da sua conclusão (art.178, inciso II, do Código Civil). No entanto, a validade da compra e venda não seria prejudicada caso o comprador se propusesse a pagar a diferença entre o preço real da obra e aquele que foi efetivamente pago (art.144, do Código Civil).

Por outro lado, em defesa daquele que comprou, é plausível o argumento de que a oferta da obra foi feita como objeto individualizado e com preço certo, sem direito a reclamações posteriores. Pelas circunstâncias, verifica-se que a peça foi vendida no estado, ficando caracterizada a venda “ad corpus”, expressão em latim que significa “por inteiro”, “assim como está”.

A compra de objetos de arte efetuada junto a lojas e similares configura relação jurídica de consumo, devendo as controvérsias daí decorrentes ser resolvidas com base no Código de Defesa do Consumidor. O referido estatuto prevê a vinculação do fornecedor à oferta (arts. 30 e 48, ambos do CDC). Além disso, eventuais dúvidas são dirimidas em favor do consumidor (art.47, do CDC).

Se o vendedor não admitia futuras discussões sobre o objeto, também não pode questionar a qualidade e o valor da obra que vendeu. A manifestação de vontade vincula as partes àquilo que foi contratado, sendo consequência natural da força obrigatória dos contratos (Pacta Sunt Servanda). Em razão disso, em nome da segurança jurídica, deve prevalecer a intenção inicial das partes de negociar um determinado objeto, no estado, por preço certo, sem direito a questionamentos futuros.

A rediscussão sobre o valor do bem vai de encontro a princípios basilares do Direito Civil, como lealdade, probidade, confiança, boa-fé objetiva (arts.113 e 422, ambos do Código Civil).

Nem sempre os negócios são bem sucedidos em favor de todos e, não raro, somente um fica feliz. Não existe um critério universal de equilíbrio na compra e venda realizada sob o manto da legalidade e boa-fé.

Ao que tudo indica, nem o antigo dono sabia o real valor do bem, que só foi descoberto graças ao ato do adquirente que teve interesse e iniciativa de restaurar a obra. Caso o antigo dono entenda que foi prejudicado pela má avaliação, deverá reclamar seus direitos junto aos profissionais que contratou – leiloeiro e avaliador.

Por analogia, pode-se aplicar o art. 1.265, do Código Civil, que trata sobre “Achado do Tesouro” e assim dispõe: “O tesouro pertencerá por inteiro ao proprietário do prédio, se for achado por ele, ou em pesquisa que ordenou, ou por terceiro não autorizado”. Quando o proprietário de um terreno descobre um tesouro, fica com a preciosidade. Da mesma forma, a descoberta da obra valiosa ocorreu por ato do novo adquirente, que deverá se beneficiar com o seu achado.

Não há que se falar em enriquecimento ilícito do adquirente da obra, pois em momento algum praticou ato em desacordo com a lei. Nem ocorreu empobrecimento do vendedor, que aceitou alienar o bem pelo preço da avaliação. O enriquecimento do comprador se deu por causa justa – restaurar e conservar o bem determinado, o que anteriormente ninguém quis fazer.

É preciso respeitar o direito do consumidor sempre, inclusive quando a sorte decorrente de seu empenho e boa-fé lhe favorecem. A celeridade está afastando definitivamente a antiga aliada daqueles que infringem reiteradamente o Direito do Consumidor – a morosidade.

Acrescentando, gostaria de expor meus pensamentos sempre que possível, ainda que em tese e modestos, para compensar o período de mais de duas décadas de respeito ao segredo na Vara de Família e ao silêncio que norteia o trabalho no Tribunal do Júri.

Encerrando, a partir do próximo mês de fevereiro espero compor a Egrégia Terceira Câmara Cível para estudar, debater e decidir novos temas jurídicos. Depois de um ano e quatro meses na Egrégia Vigésima Quarta Câmara Cível, levo comigo o importante aprendizado e muita saudade dos meus Colegas, aos quais agradeço pelo acolhimento carinhoso recebido.