O jornal “Monitor Mercantil” publicou, na última quarta-feira (20), o artigo “Admirável Mundo Velho”, escrito pelo desembargador Wagner Cinelli, do Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro (TJ-RJ). O magistrado analisou a desigualdade de gênero presente na ficção e na sociedade.
Wagner Cinelli é autor dos livros “Sobre ela: uma história de violência” e “Metendo a Colher” e diretor do premiado curta-metragem de animação “Sobre Ela”. Confira a íntegra do artigo:
Admirável Mundo Velho
A ficção científica é um gênero marcado pela especulação sobre o futuro e um de seus expoentes é Aldous Huxley, autor de Admirável Mundo Novo, obra que retrata um lugar com alto desenvolvimento tecnológico e profundas mudanças na estrutura da sociedade.
Se o mundo imaginado por Huxley trazia novidades em tantos aspectos, há um exemplo de futurologia que pensou o mundo com tecnologia avançada mas sem qualquer mudança em relação às estruturas social e familiar: Os Jetsons, desenho animado do Estúdio Hanna-Barbera, lançado em 1962.
Essa produção antecipou diversas inovações, como robôs e chamadas por vídeo. Quanto aos carros-voadores de Orbit City, ainda não trafegam pelos céus de nossas cidades, mas já saíram do papel e há notícias de que em breve farão parte de nossas vidas.
De fato, a previsão futurista dos idealizadores da Família Jetson acertou com relação a alguns avanços tecnológicos. No entanto, quanto à estrutura familiar, a série de animação manteve aquela que predominava na época de sua criação.
O pai, George, pilota seu carro-voador e trabalha fora. É o provedor. Aliás, a versão em língua inglesa da Wikipédia o descreve como “o patriarca”. A mãe, Jane, é dona de casa e tem como passatempo ir ao shopping, especialmente para comprar roupas e eletrodomésticos de última geração. Um outro atributo de sua personalidade, como descrito em diversos sites, é ser “obediente”. Judy, a filha adolescente, é interessada em roupas e baladas, tudo a indicar que, com os anos, será uma réplica da mãe. Elroy, o filho de 6 anos, é inteligente e engenhoso. O prognóstico para esse menino é de que, com sua genialidade, poderá ter o mundo aos seus pés.
Não podemos esquecer de outra personagem que é praticamente da família, a Rosie. Sim, é um robô, mas não é uma máquina qualquer. É um robô empregada doméstica, que torna mais fácil a vida daquele núcleo familiar, com bons benefícios para Jane, a dona de casa. Esse robô, como já dito, tem nome. Nome de mulher, voz – ainda que eletrônica – de mulher e roupa, na modalidade de uniforme, de mulher. Não é John, é Rosie.
O exemplo pinçado mostra como a cultura reflete e retroalimenta a estrutura social até mesmo quando se idealiza um mundo do futuro com tantas novidades. Cidades suspensas, foguetes, viagens espaciais e muito mais. A família, entretanto, é a mesma do século passado, com patriarca, mãe dona de casa obediente, filha fútil e filho promissor.
As desigualdades de gênero refletidas nos Jetsons existiam no século passado e perduram nos dias atuais. A família de George, porém, não está em julgamento. É aqui apenas uma alavanca para pensarmos sobre os papéis sociais de gênero e, com esse exercício, questionarmos a realidade e trabalharmos pelas mudanças em favor da igualdade. Do contrário, o mundo novo do futuro pode se revelar nada mais que um admirável mundo velho.
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