*O Globo
Sentada numa cadeira ao lado do ônibus da Justiça Itinerante, na Praça Onze, Yasmim Isabela da Silva Assunção, de 20 anos, amamentava o filho Davi Lucas, de um ano e nove meses. Eram 10h da última sexta-feira, e ela respondia às perguntas da assistente social sobre o filho. Nem a mãe nem a criança tinham certidão de nascimento. Mas a jovem decidiu regularizar a situação de Davi por medo de o menino ir para um abrigo, a exemplo do que ocorreu com Miguel da Silva, bebê nascido dentro de um ônibus no último dia 16.
Por determinação da 3ª Vara da Infância, da Juventude e do Idoso, Miguel acabou retirado dos pais porque a Justiça entendeu que, assim como três irmãos do recém-nascido, ele não seria registrado. Sem o documento, as crianças não frequentavam a escola e não teriam sido vacinadas, num caso que deu visibilidade a uma situação mais comum do que se possa imaginar: uma legião de pessoas sem a certidão de nascimento.
— Senti muito medo de tirarem meu filho de mim. Quando eu tive o Davi, era muito nova e não sabia que tinha que registrar logo. Depois, falaram que precisava pagar para ter a certidão. Mas, com a notícia da mãe que ficou sem o filho dela, procurei me informar. Ele vem em primeiro lugar na minha vida — diz Yasmim, levada pelo cunhado Alison Ramos, de 27, até o ônibus da Justiça Itinerante naquele dia.
Múltiplas consequências
Assim como a jovem e seu filho, segundo a prévia do Censo de 2022 do IBGE, são 2,7 milhões de brasileiros sem certidão no país, 2,59% da população. Só no Rio são 200 mil. Dados da Defensoria Pública do Rio mostram que, só em 2022, 435 pessoas, incluindo crianças, jovens e idosos, foram registradas tardiamente nos núcleos da instituição — ou seja, mais de uma por dia.
Há histórias de idosos que nunca tiveram o documento. São pessoas como o ex-ajudante de caminhão Manoel de Pontes Dantas, de 76 anos, que contou com a gratidão da filha de uma ex-companheira para buscar seu direito ao registro civil no ônibus estacionado na 1ª Vara da Infância, da Juventude e do Idoso, na Praça Onze.
— Quero me aposentar — justificou Manoel.
De acordo com a coordenadora da Justiça Itinerante para Erradicação do Subregistro de Nascimento, a juíza Claudia Maria de Oliveira Motta, trata-se de um direito fundamental da pessoa, previsto no Pacto de São José da Costa Rica (Convenção Americana sobre Direitos Humanos), da qual o Brasil é signatário.
— Sem o registro de nascimento, a pessoa não existe. É invisível. A pessoa não pode se vacinar, não tem como fazer a matrícula na escola, não tem como buscar benefícios como o Bolsa Família ou aposentadoria. Nem direito a morrer com dignidade tem. Será enterrado como indigente — explica Claudia.
Quando não está nas audiências no ônibus, a juíza tira dúvidas dos que buscam a certidão de nascimento ou a segunda via do documento, assim como a emissão da identidade e da certidão de óbito. Desde 2014, quando a Justiça Itinerante começou a prestar os serviços, houve 30 mil atendimentos feitos por defensores públicos, assistentes sociais, magistrados e promotores, além do Detran e do cartório do registro civil de pessoas naturais. Na última sexta-feira, a Fundação Leão XIII se juntou ao mutirão, levando idosos para dar assistência.
Pesquisas rigorosas
Logo que chega, a pessoa passa por um defensor público que faz a petição requerendo o serviço. Em seguida, a assistente social faz as buscas para checar as informações prestadas pelo usuário. Quando a mãe apresenta a declaração de nascido vivo, documento entregue pela maternidade após o parto, a funcionária da Justiça procura no banco de dados — que inclui todos os hospitais do Rio e de outros estados — se o bebê realmente nasceu no local escrito no documento.
Mas nem sempre as pesquisas são simples. Às vezes não há a declaração ou, se for idoso com algum tipo de demência, a investigação é mais complexa. Nem sempre a pessoa sai com a certidão no mesmo dia, apesar de a meta ser a entrega rápida de documentos.
— As pesquisas são rigorosas e cabe ao Ministério Público, como fiscal da lei, tal preocupação. Fazemos a identificação datiloscópica, pesquisas nos órgãos de identificação civil e maternidades — relata Claudia Motta.
— O fato é que não se pode negar o registro de nascimento a ninguém. Tive um caso de uma moça abandonada ainda bebê na porta de um abrigo. Não foi registrada e nada se sabia sobre sua origem, nome da mãe, local ou data do nascimento. Vivia como se não existisse. Fizemos o registro de nascimento com data fictícia. O abrigo foi o local de nascimento, inventando o nome dos pais. A lei faculta isso — reforça a magistrada.
Em Paty do Alferes, o defensor público Frederico Laport conseguiu unir mãe e filha separadas há 16 anos. A mãe da criança, por ter apenas 15 anos e sofrer violência doméstica à época, entregou o bebê para a ex-cunhada. A filha cresceu e também teve um filho, longe da mãe biológica. Quando a jovem quis ser registrada, procurou a Defensoria Pública, que localizou a mãe dela.
— As certidões da filha e do neto dessa senhora foram emitidas. A jovem pensava que havia sido abandonada pela mãe, mas tudo foi esclarecido no encontro das duas. As relações afetivas foram restabelecidas. A solução jurídica foi dar dignidade à família — ressaltou Laport.
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