*O Globo – Celina
Wagner Cinelli, 57 anos, poderia ter seguido o script de uma sociedade machista, como é a brasileira, e ser mais um homem a repetir indefinidamente preconceitos sexistas. Mas, como ele mesmo diz nesta entrevista feita por Skype, “a vida é para questionar”. E foi questionando o mundo ao seu redor, sobretudo as partes envolvidas em casos de lesão corporal que chegaram as suas mãos, que o desembargador do Tribunal de Justição do Rio de Janeiro (poeta, músico e diretor de curtas de animação nas horas vagas) se tornou um defensor da igualdade de gênero.
A experiência na segunda vara criminal, em Petrópolis, e na vara de família, em São Gonçalo, fizeram Cinelli questionar homens e mulheres e adentrar o mundo silencioso onde a violência doméstica é regra. A partir do que viu, ouviu e aprendeu em mais de 20 anos de profissão, ele pensa que a legislação brasileira sobre o tema é boa, mas não chega a quem mais precisa. E, fundamentalmente, acredita que é preciso investir nos mecanismos de proteção da mulher e comunicar bem essa estrutura, além de iniciar já um projeto de educação da sociedade para que ela rompa o ciclo da violência.
— Governos fazem escolhas, então é preciso uma cobrança coletiva forte. Se não fizermos isso, só hoje teremos três mulheres vítimas de feminicídio — afirma.
Cinelli criou o curta “Sobre Ela”, uma história trágica de violência contra a mulher, que está percorrendo festivais internacionais e acabou de vencer duas categorias no britânico Screen Power: melhor filme de animação e melhor trilha sonora. O filme serviu de inspiração para um livro de mesmo nome, que ele lança agora: didático e simples para que todos possam entender os elementos estruturais da cultura que tornam a sociedade brasileira tão violenta, sobretudo contra as mulheres, e a legislação disponível para protegê-las.
— Não vejo solução a curto prazo. A gente precisa de mais educação, de mais prevenção e de trabalhar para que as pessoas tenham instrumentos.
Leia abaixo a entrevista com o desembargador Wagner Cinelli, autor do livro “Sobre Ela” (Gryphus Editora):
Por que decidiu fazer um curta e escrever um livro sobre a violência contra a mulher?
O objetivo é chamar atenção para o problema, que existe e é grave. Eu ouço, até mesmo de muitos colegas, que a lei penal resolve. Há gente que fala em “hominicídio”, em “machicídio”. Sim, há mulheres que matam seus maridos. Mas isso é um ponto fora da curva; não tem importância sociológica. Levantar isso é querer desviar o debate.
E o que o fez entrar no debate?
Quando fui titular da segunda vara criminal, em Petrópolis, notei um aumento nos casos de lesão corporal e ameaças envolvendo companheiros. Entendi que a entrada em vigor da Lei 9.099, que estipulava que delitos de menor potencial ofensivo fossem encaminhados ao juiz, estava trazendo até a vara essa violência que antes parava na delegacia. Eu sempre gostei de conversar com as partes, e o que eu mais ouvia era que aquela mulher já tinha ido à delegacia, mas nunca viu resultado no processo. Eram inquéritos que não viravam ação penal e, veja bem, estou falando das mulheres que foram à delegacia, muitas não vão. E, mesmo as que vão, só o fazem depois de algumas agressões. Quando assumi a vara de família em São Gonçalo, os conflitos apareceram também. Era muito comum o homem estrangular a mulher financeiramente com coisas do tipo “Eu pagava alimentos, sim, mas agora ela tem um namorado.”
E por que as mulheres não viam resultado nas denúncias?
Até então, os processos que viravam inquérito eram os flagrantes. O delegado, obviamente, dava as razões dele: não tem viatura, pessoal ou como investir no caso. E há as questões culturais também: eu ouvia policiais dizendo que briga de marido e mulher é “feijoada”, que não dá em nada. Eles me diziam: “Doutor, aquele homem era terrível, mas um dia na delegacia eu bati na mesa e falei duro, só que a mulher veio defendê-lo.”
A estrutura não funciona e, eu imagino, funciona menos ainda para as mulheres.
Funciona menos para a mulher. Se ela for negra, menos ainda. Vai acumulando e só ela, que é quem vive a situação, sabe. A quem diz que o machismo não existe, eu recomendo que pergunte a uma mulher. Estou tristemente convencido de que muitas mulheres continuarão a ser assassinadas e violentadas nos próximos anos; não vejo solução a curto prazo. A gente precisa de mais educação, de mais prevenção e de trabalhar para que as pessoas tenham instrumentos. E são só as pessoas mais pobres? Não. A juíza Viviane (Viviane Vieira do Amaral Arronenzi foi morta pelo ex-marido na véspera de Natal, no Rio de Janeiro) não foi a primeira mulher graduada em Direito a ser assassinada.
Os casos de feminicídio têm repercutido muito no país. Acha que pode haver algum recrudescimento na legislação atual?
Sim, haverá algum recrudescimento na lei penal, o que é normal, porque o Brasil age assim. Do Natal para cá, tivemos muitos casos emblemáticos, e é preciso dizer ao abusador que a fatura vai ficar mais cara. Mas também precisamos entender que chegamos a um patamar civilizatório em que isso não é mais aceitável. O quadro é ruim, e os estudos indicam que piorou na pandemia. O assunto é grave, e no Brasil a gente foge dos assuntos graves: a violência contra a mulher é um; o passado escravagista é outro, parece interessar mais aos negros do que aos brancos. Não pode ser assim.
A legislação atual é suficiente?
Já houve uma evolução legislativa importante. Acho que vai haver — e deve haver — um recrudescimento em relação a homens abusadores, do ponto de vista das sanções penais aplicáveis aos crimes que praticam. Nosso problema é menos de leis do que da efetividade delas. A Lei Maria da Penha, por exemplo, é muito boa e tem recebido aprimoramentos, o que é natural. O problema é que as leis não beneficiam a todas. Diante da natureza dessa violência, a mulher se fecha.
Precisamos trabalhar melhor a prevenção?
Precisamos trabalhar prevenção e investimento nas delegacias especializadas, nos abrigos e em ideias como a ronda Maria da Penha e os aplicativos de pânico. Mas não adianta ter o aplicativo e ninguém saber que ele existe. Qualquer pessoa sabe que 190 é o número da polícia; e todos têm que saber que o 180 é a Central de Atendimento a Mulher e que lá existe uma escuta qualificada para ela, mas também para qualquer um que conheça uma mulher nessa situação e queira ajudar. Precisamos de governos que estejam preocupados com esse tema, que queiram investir nisso. Governos fazem escolhas, então é preciso uma cobrança coletiva forte. Se não fizermos isso, só hoje teremos três mulheres vítimas de feminicídio.
Mas como mudar a situação sem mudar os homens, os juízes que dizem que não estão nem aí para a Lei Maria da Penha?
Há muito ângulos a serem explorados conjuntamente. A estrada é longa e, primeiro, precisamos falar sobre as mulheres, os abusadores e a sociedade. Vai ter gente contra essa conversa, mas parte da batalha é mostrar a essas pessoas que o caminho é a igualdade. Precisamos também romper o ciclo de violência. A sociedade brasileira convive com a violência o tempo todo: o maior batendo no menor, o mais forte bate no mais fraco. Tudo isso penetra na nossa vida de forma invisível, mas é pesado. Internalizamos a desigualdade como natural, somos uma sociedade em que se diz “você conhece alguém lá?” ou “você sabe com quem tá falando?”. A gente ainda não internalizou que o direito é igual para todos.
Você acredita que os homens estão dispostos a discutir, não apenas a violência contra a mulher, mas o machismo que estrutura a sociedade, as relações de poder e os papéis de gênero?
Antes da Revolução Francesa, o rei Luís estava tranquilo. Há processos em que as coisas são empurradas e não tem volta. Eu estou animado, outros não estão, mas estarão. Se a gente não falar do tema, muitos não vão se dar conta de que ele existe e é importante. E não é um problema complicado de entender, basta entrar no Google, onde há tantos exemplos com ingredientes ruins: mulheres atacadas com ácido, água quente, torturadas. Temos que dizer que quem fez isso foi um homem.
Com 57 anos, você certamente cresceu em uma cultura machista. Como foi o processo para romper com ela?
Eu nasci no final de 1963, meu pai era mineiro, com 15 irmãos, e teve uma criação muito rigorosa. Aquelas famílias em que descumprir alguma coisa era risco de surra. Ele era uma figura forte e trazia muito desse machismo de que falamos. E eu fui criado nesse ambiente, na escola, o que os meninos falavam das meninas, na família, na TV. Mas a vida é para questionar. Acho que a dúvida metódica do Descartes é para a gente questionar as coisas. Nesse questionamento, eu penso que há um movimento evolutivo, a gente vence níveis de ignorância à medida em que estuda, pensa e debate sobre os temas. Quando jovem, eu certamente ri de piadas machistas. Hoje, não acho a menor graça nelas.
Você acha que mais homens vão se aproximar do livro porque foi escrito por um homem?
Sou a favor de somar vozes. Se isso fizer mais homens escutarem ou pararem para pensar no assunto, está valendo.
A maior parte das mulheres vítimas de violência são mães, o que traz consequências para os filhos também. Quando o pai é o agressor, o que a Justiça faz?
São muitos os processos com essa alegações, e também com alegações de abuso sexual por parte do pai, embora isso seja mais comum com os padrastos. É claro que, se um pai coloca em risco a integridade dos filhos, essa visitação será suspensa ou acontecerá sob supervisão. Muitas vezes, as mães permanecem no relacionamento por causa dos filhos, elas desenvolvem estratégias de sobrevivência interna para protegê-los. O único jeito de acabar com o ciclo da violência é a separação.
E por que uma mulher deve ler um livro sobre violência de gênero escrito por um homem?
Boa pergunta. A pessoa lê o que quiser e pode fazer o sexismo dessa forma, mas não aconselho porque o mundo é maior que isso. Há temas que considero importantes, mas não sou legítimo naquele lugar de fala. Só que estou confortável em fazer porque trabalho com a ideia de que essas lutas são nossas, de quem quiser entrar no barco. Espero que as mulheres queiram ler o livro e que falem sobre o assunto.
Muitas teóricas feministas afirmam que a ideia da família aprisiona a mulher no lugar de subalternidade e violência. Concorda?
Acho que contribui, nada é fator único, mas contribui. A mulher tem que estar casada e cuidar da família, que é responsabilidade dela, isso tudo permeia, sim. Conheci uma mulher que teve mais de um processo contra o marido por agressão. Quando saiu a sentença, a escrivã me disse que essa mulher pegou a guia e pagou a pena de multa no banco. Quando eu a encontrei, questionei por que ela pagou a pena dele: “Lá em casa, a gente não tem dívida”, disse ela.
Serviço:
“Sobre ela: uma história de violência”
Autor: Wagner Cinelli.
Editora: Gryphus.
Páginas: 158.