Brasil | 11 de fevereiro de 2018 09:33

Ministro Salomão diz que Brasil vive momento de ‘judicialização’

FOTO: Ascom STJ

Entrevistado pelo portal jurídico Jota, o ministro Luis Felipe Salomão, do Superior Tribunal de Justiça (STJ), afirma que o país enfrenta uma “judicialização da vida” e que esta é uma das razões de os magistrados estarem vindo a público a fim de externar suas opiniões.

Salomão identifica antagonismos entre a liberdade de expressão e o direito à privacidade e aponta o interesse da coletividade como ponto central para a tomada de decisão por parte do julgador em situações em que o conflito se estabeleça.

Leia a seguir a íntegra da entrevista ao site.

“Direito ao esquecimento não é censura”, diz ministro do STJ

Para Luis Felipe Salomão, a liberdade de expressão não ultrapassa outros direitos

O ministro Luis Felipe Salomão, do Superior Tribunal de Justiça (STJ), é uma das principais vozes do mundo jurídico quando o assunto são os novos temas do Direito, como o impacto das novas tecnologias nas relações sociais e comerciais. Salomão também foi relator de diversos casos importantes para a liberdade de expressão no país.

Para ele, o Brasil vive uma “judicialização da vida”, o que forçou os juízes a expressar cada vez mais suas opiniões. A maior exposição dos magistrados está associada também à “redescoberta do Judiciário como guardião das promessas” da Constituição de 1988.

Quanto à liberdade de expressão, o ministro avalia que ela “é um direito que não ultrapassa os outros direitos”, e que não há conflitos entre a liberdade de se expressar e o direito à privacidade.

“O papel do juiz constitucional que julga uma causa sobre um aparente conflito entre liberdade de expressão e garantia da privacidade é ponderar entre esses valores para chegar ao resultado melhor que aquele caso desafia”, afirma Salomão.

“O ponto central que ele vai levar em consideração é o interesse público”, diz. “Como não há conflito entre os princípios, se naquele caso prepondera mais a liberdade de expressão, ele vai por esse caminho. Já se prepondera mais o direito à privacidade, ele segue este outro caminho, a partir do interesse público”.

Guiado por esse norte, Salomão relatou dois casos sobre o direito ao esquecimento envolvendo reportagens televisivas. O resultado das duas decisões foi divergente. Os casos voltarão, agora, a ser apreciados pelo Supremo Tribunal Federal.

A Justiça terá também de definir a questão do direito ao esquecimento na internet — o que não se sabe se o STF fará nesses casos, já que se trata de questões envolvendo reportagens de televisão. Segundo o ministro, a associação do direito ao esquecimento à censura é equivocada.

“Quer dizer que a Europa faz censura com chancela do Tribunal de Justiça Europeu?”, provoca. “A ideia de que é possível retirar o conteúdo é aceita no mundo todo. Não é censura. É um direito que a pessoa tem à sua privacidade quando isso for reconhecido”.

Confira a entrevista que o ministro concedeu ao JOTA.

Recentemente o senhor organizou um seminário sobre ativismo judicial. Essa questão toca no ponto sobre a liberdade de expressão dos juízes e até onde eles podem se expressar. Qual a sua visão sobre o tema?

Esses seminários realizados aqui no STJ são essenciais para nós. No dia a dia, não conseguimos tirar um tempo para aprofundar e debater algumas temáticas importantes. Este tema é institucional, mas também é do momento, uma vez que há um processo no mundo – e em especial no Brasil – de judicialização da própria vida, em que foram judicializadas as relações sociais, políticas, econômicas, enfim, tudo acaba no Judiciário. É preciso debater este tema com transparência.

A grande centralidade das discussões ali era sobre qual o limite do juiz. Quando iniciei na magistratura, a grande temática pós-1988, quando houve uma redescoberta do Judiciário como guardião das promessas da Constituição e dos direitos enumerados ali, era porque os juízes não conversavam com a sociedade. Eram trancados nas suas ‘torres de marfim’ e inacessíveis. Chegou-se a criar a expressão da “caixa-preta do Judiciário”.

Saímos deste extremo para outro totalmente oposto, o de um juiz participando de tudo, se envolvendo em tudo, sendo demandado para tudo e falando sobre tudo. Precisamos saber qual é o meio-termo disso. A virtude está no meio-termo.

O juiz não pode se encastelar, tem de prestar contas. Ao mesmo tempo, não pode ficar a descoberto, opinando sobre temas que julgará. Ou seja, cobrando o escanteio e correndo para cabecear. Precisamos encontrar esse ponto de equilíbrio. Também transbordando isso para a própria atividade jurisdicional.

Antes, o juiz era muito contido. Não ia além da letra da lei. Tem até uma expressão famosa do Eduardo Juan Couture, processualista uruguaio, “o juiz quando interpreta a lei é como alguém que está preso dentro de uma cela. Ele tem a liberdade dentro da cela, mas não pode sair da cela”.

O limite para ele é a lei. Ele não pode potencializar a lei, pode interpretar, mas não pode criar o Direito. Então, essa discussão hoje é atualíssima e precisa ser amplificada. Na medida em que o juiz ultrapassa e potencializa os limites da lei, ele passa a suprimir funções e cria confusão entre a atribuição dos poderes.

Há um caso em que tem uma interseção na confluência em que praticamente todos os autores concordam que os juízes têm de ser para além da lei: é quando se trata de questões contramajoritárias envolvendo direitos fundamentais. Alguns exemplos: o aborto, união homoafetiva.

Nesses casos, como o Parlamento fica muito dividido e estamos tratando de minorias, só tem o caminho do Judiciário. Daí a ultrapassar estes temas para discutir outros que o Parlamento livremente deve tomar suas decisões é um passo enorme. Novamente: é preciso encontrar o meio-termo dessa balança.

Vemos que há um movimento de juízes e ministros de tribunais superiores que falam sobre política e outros assuntos. Parece que essa liberdade é maior para um ministro do que para um juiz de primeiro grau…

Vamos separar em dois aspectos. O primeiro trata das opiniões públicas que os ministros expressam, o que hoje em dia infelizmente se banalizou. Nesse aspecto, creio que a maioria dos juízes tenha a ideia de que tem de resguardar suas posições, expressar uma posição dogmática ou se empenhar em temas relevantes de natureza nacional.

Mas daí a ultrapassar isso tem uma linha tênue. Na questão dos ministros do Supremo, se trata do ápice da carreira e da expressão da chefia do Judiciário, o tratamento é um tanto diferente.

Mas a maioria dos juízes da base têm a concepção de que o juiz só manifesta sua expressão dentro do processo, decidindo, e não pode ficar opinando sobre tudo.

Outro viés é a questão da atividade jurisdicional em si. Esse é o tema do ativismo. Ele ganha relevo porque agora toda a ideia de neoconstitucionalismo, atuação proativa, tudo isso vem no bojo de um sistema de Commom Law, no qual existe o precedente e o juiz tem de criá-lo.

Por isso que se diz que o juiz na Commom Law é a jurisprudência viva. É diferente do nosso sistema, que é de legalidade estrita. O juiz não pode ultrapassar a lei.

Como no Código de Processo Civil, e em toda mudança que fazemos, estamos criando uma espécie de direito de precedentes por aqui também. É nesse momento de mudança que precisamos assentar o papel de cada um para não virar bagunça.

Atualmente, há muito acesso ao trabalho da Justiça, como as transmissões da TV Justiça. Como as novas tecnologias e a mídia impactam na expressão dos juízes?  

Esses são grandes temas que gostaria de separar. Na questão da mídia, há vários julgados e estudos do mundo inteiro discutindo essa influência.

Não especificamente sobre a transmissão da mídia, mas a influência do papel da mídia sobre o resultado do julgamento. Não se tem uma conclusão. Mas o que se tem é alguns julgados de Corte Suprema, especialmente nos Estados Unidos, que anulam o julgamento de júris por influência de matérias jornalísticas sobre os jurados.

Já há vários precedentes sobre esse tema nos EUA e em outros países, como Canadá e Reino Unido. Estamos na época da comunicação. A grande revolução deste século é a da comunicação instantânea.

Tanto é verdade que os telefones inteligentes revolucionaram a nossa vida. Substituiu-se a comunicação de massa pelas redes sociais.

Quem ignorar isso não vive neste mundo. Dentro deste contexto de era da mídia, o juiz não está dissociado. A TV Justiça talvez tenha uma influência? Talvez. Acho que não é essencial.

O que mudou foi o mundo, que está vivendo uma revolução da comunicação. Dentro dessa revolução, tem que se verificar o real papel do juiz em comunicar e em ser comunicado.

Por isso que não podemos parar de discutir o ativismo judicial e o papel do juiz. Agora, a influência no resultado do julgamento é matéria jurisdicional, e assim vem sendo tratado em vários países do mundo.

Recentemente o ex-ministro do STF Carlos Ayres Britto afirmou que a liberdade de expressão é um direito absoluto. O senhor concorda com esta visão?

Todos os doutrinadores constitucionais concordam em um tema: liberdade de expressão é uma garantia constitucional que não pode ser tirada e não pode haver censura prévia.

Nosso país passou por muitas dificuldades em decorrência justamente de períodos obscuros. Por isso, cravou na Constituição a liberdade de expressão. Mas é um direito que não ultrapassa os outros direitos.

Os constitucionalistas dizem que não há antinomias no texto constitucional. Quando o Constituinte fez o pacto da Constituição, ele disse: ‘esses são princípios fundantes da Constituição brasileira’.

Dentre eles, a liberdade de expressão. Mas dentre eles também há a garantia dos direitos da privacidade, da individualidade e se estabeleceu um rol de outros casos.

Eu diria que não há conflito entre eles. É esse o papel do juiz constitucional que julga uma causa sobre um aparente conflito entre liberdade de expressão e garantia da privacidade.

Ele faz uma ponderação entre esses valores para se chegar ao resultado melhor que aquele caso desafia. O ponto central que vai levar em consideração é o interesse público.

Como não há conflito entre os princípios, se naquele caso prepondera mais a liberdade de expressão, ele vai por esse caminho. Já se prepondera mais o direito à privacidade, ele segue este outro caminho, a partir do interesse público.

No caso do direito ao esquecimento, o senhor foi relator do caso Aída Cury, que hoje tramita no Supremo Tribunal Federal. Como o senhor vê essa disputa entre esses dois direitos?

A questão desse debate do direito ao esquecimento é um tanto desvirtuado porque se evoca sempre a questão da censura. Isso é completamente furado.

Em primeiro lugar porque ninguém proíbe a publicação e veiculação de nenhum programa. O que se discute é um direito novo, diferente do direito de indenização por dano moral, que é um direito de a pessoa ter a sua individualidade preservada em situações que a lei garante.

Então, não há censura prévia. Qualquer matéria ou programa pode ir ao ar. O direito ao esquecimento prega que, em determinadas circunstâncias, ou se indeniza aquele que tem o direito de ser esquecido, ou se define, se for em caso de internet, como os registros vão permanecer na rede para que não prejudiquem aquela pessoa.

Isso já acontece hoje na Europa aos borbotões. Tanto é que o caso Costeja-Gonzalez foi julgado por um tribunal da comunidade europeia. De lá para cá, isso vem sendo aceito. Então, quer dizer que a Europa faz censura com chancela do Tribunal de Justiça Europeu?

Além disso, vamos precisar discutir – e nossos precedentes ainda não trataram disso – a questão da internet, que é central. Não sei se nesse caso do Supremo eles vão chegar à internet, porque o caso trata de televisão.

Mas a internet tem várias nuances que vamos precisar analisar, tomando por base outros tribunais que já decidiram esta questão. Vamos precisar fazer uma grande discussão sobre isso.

Já temos 58 projetos de lei para mudar o Marco Civil da Internet (MCI), que foi aprovado em 2014. Existe uma resistência ao MCI?

Ao contrário, estamos aplicando o MCI na 2ª seção, começando a criar os precedentes. Tem funcionado bem. Mas esse tema é de uma dinâmica impressionante.

Antes desta entrevista, os Estados Unidos quebraram a chamada neutralidade de rede, um preceito universal. Então, há uma constante movimentação deste particular.

Observadores da liberdade de expressão costumam dizer que as Cortes Superiores tendem a privilegiá-la enquanto muitos julgadores de primeira instância pendem para os direitos de personalidade quando se deparam com uma colisão de direitos. Como tornar a discussão judicial da liberdade de expressão mais previsível? 

Interesse público. O fio da meada e o divisor de águas tem de ser o interesse público. Por exemplo, tivemos um caso no STJ que é bem emblemático, julgado há uns quatro anos.

Embora fosse de uma prefeitura do interior em uma disputa com o jornal local, acho que não teve tanta ressonância como deveria ter tido. Ali, discutimos dois conceitos muito interessantes.

Um motorista da Câmara municipal teve um registro de ocorrência em que foi flagrado dirigindo alcoolizado. Isso foi noticiado pelo jornal local. Ele, então, entrou com a demanda dizendo que isso era a vida privada dele.

No STJ, discutimos: o que prepondera naquele caso? Prepondera que, por ser motorista da Câmara, o fato de noticiar que ele foi flagrado dirigindo bêbado é importante – ainda que ele estivesse fora do horário do serviço.

Além disso, discutimos uma doutrina do caso The New York Times x Sullivan, um caso marcante, em que tentou se introduzir no Brasil essa doutrina que chamam de “actual malice”.

Se é a responsabilidade do jornal e do jornalismo e se tem de se provar má-fé na divulgação da notícia. Discutimos isso de maneira muito intensa. Foi um precedente interessante.

Na questão da remoção de conteúdo na internet, provedores de aplicação alegam não ser viável propiciar uma remoção baseada em critérios gerais. Como o senhor vê a viabilidade técnica disso?

Temos uma certa oscilação desses dois temas. Quanto à necessidade de indicação precisa da URL, o Marco Civil é preciso e dispôs sobre isso. Temos procurado, na 2ª seção, seguir este parâmetro.

Há um julgado meu que diz que precisa dessa indicação. É claro que os provedores procuram trazer sempre essa questão da tecnologia, mas sabemos que, do ponto de vista técnico, se faz o controle quando se quer.

Não é basicamente uma defesa que vem sendo aceita. O que estamos nos atendo é sobre as disposições legais. Se não pode fazer porque não tem ferramenta, tem de criar a ferramenta. Essa é a nossa ideia. Mas tem que fazer o que está na lei.

Além disso, um segundo tema é se precisa de notificação prévia e de que maneira se faz essa notificação, se é judicial ou extrajudicial.

Nesse ponto, a posição oscila um pouco (entre a 3ª e 4ª turma). Mas a 2ª Seção já vem em alguns julgados dizendo que basta qualquer forma de notificação que deve ser considerado pelo menos o aviso. É uma pendência.

Nesses casos de remoção de conteúdo, a tese é mais de responsabilidade subjetiva do provedor?

Julgamos um caso emblemático de um cursinho preparatório para concurso. Nele, dentro de uma rede social, um dos integrantes disse que conseguiria piratear a aula de um professor do cursinho.

O cursinho entrou com uma ação contra o Google. Tivemos que analisar ali se havia efetivamente algum proveito do Google com essa atitude do pirateador.

Fomos buscar alguns precedentes, especialmente no direito americano que já teve a oportunidade de apreciar o tema.

Há os casos do Napster e do Pirate Bay em que se conseguiu estabelecer o limite de responsabilidade do provedor; e se ele teve algum proveito econômico.

O que tem prevalecido não é uma responsabilidade objetiva do provedor, mas subjetiva, ou seja, tem de demonstrar a culpa e alguma coisa agregada, que é o proveito econômico.

Para o senhor, há situações em que a remoção de conteúdo é válida? 

Há casos que a própria lei destaca, como pedofilia. Tem que tirar. Se migrou para outro URL, tem que tirar. Tem algumas situações que a própria lei dispõe que é obrigação do provedor fazer a remoção imediata.

E nos casos que envolvem direitos de personalidade?

Acho que é caso a caso e tem que ser analisado isso, sim. Essa ideia de que é possível retirar o conteúdo é aceita no mundo todo. Não é censura isso. É um direito que a pessoa tem à sua privacidade quando isso for reconhecido. Agora, não pode ser um capricho. Se realmente acontecer de a pessoa ter sido autora de um crime, não há como evitar a menção. Mas há situações e situações.

Para finalizar, como o senhor avalia o papel das novas tecnologias no Judiciário?

Estamos vivendo uma situação de muita preocupação frente à enorme quantidade de demandas no Judiciário. Isso trava, cria uma taxa de congestionamento que é das maiores do mundo.

Então, não tem milagre. Tem que fazer o deve de casa. O que precisamos agora é de políticas públicas bem definidas pelo CNJ, Escolas de Magistratura para trabalhar alguns eixos de maneira organizada para que possamos debelar essa crise.

Uma política pública bem nítida na área de gestão, capacitação de servidores e magistrados para enfrentar a quantidade de processos.

Na gestão, tem que apurar a produtividade, eficiência da máquina e incentivar de maneira mais real as soluções alternativas à Jurisdição.

Se não tiver o apoio do poder público, isso não vai para frente. Instrumentos como mediação e outras formas de solução alternativas têm de ter o apoio decisivo do Poder Judiciário.

Por último, temos que discutir a questão das custas judiciais mais efetivas. Não é obstar o acesso à Justiça, mas ao mesmo tempo colocar isso em patamar real.

É importante começar a cuidar da questão da inteligência artificial para dentro do Judiciário. Em vários países já vem sendo desenvolvido e o Brasil ainda está engatinhando.

Se não tratarmos adequadamente desse ponto, vamos ficar para trás nessa corrida.

Essas medidas têm o potencial de desafogar o sistema…

Hoje, ao se falar em advocacia no mundo, fala-se de temas como a tecnologia blockchain. Se não trouxermos para cá logo e trabalhar esses pontos, vamos ficar para trás.

Mariana Muniz – Brasília
Luciano Pádua – São Paulo