* ConJur
Quem acompanha as sessões do Órgão Especial do Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro, todas as segundas-feiras, sabe que dificilmente algum processo será decidido por unanimidade. Voz nem sempre acompanhada pelos demais membros do colegiado, o desembargador Nagib Slaibi Filho costuma se manifestar, ou para colocar em apreciação uma questão de ordem, ou para divergir sobre algum aspecto técnico do processo.
O perfil inquiridor tem muito a ver com a personalidade. “Sou legalista. Diz a minha irmã que sou o símbolo do conservadorismo, pois sou mineiro, católico devoto de Santa Terezinha e ainda sou juiz. É, realmente sou um conservador”, afirmou, aos risos, à ConJur.
Mas não é só isso. Para o desembargador, o Poder Judiciário não está à parte da sociedade — e os tribunais acabam sendo uma espécie de espelho das diferenças ideológicas que há no lado de fora.
“Entre nós, há gente com ideias diferentes. Eu sou Vasco, tem gente que é Flamengo. Então, a Justiça reproduz a sociedade na qual estamos inseridos. Há uma piada horrorosa de que tem juiz que indefere Habeas Corpus até para a própria mãe só para manter a opinião. Por isso, há o colegiado. No Órgão Especial, julgam 25. Um dá provimento [à causa], o outro nega. Afirmar a unanimidade em uma sociedade dispare e diversificada é impossível”, ressaltou.
Outro fator de inquietude é o alcance social das decisões que profere. Nesse sentido, o desembargador — que é responsável pela cadeira de Direito Constitucional da Escola da Magistratura do Estado do Rio de Janeiro — destaca o avanço no arcabouço legal, principalmente com o novo Código de Processo Civil.
“O artigo 8º do novo CPC trouxe uma redação muito mais inteligente, que diz que o juiz tem que julgar as causas de acordo com o seu fim social e com o princípio de dignidade da pessoa humana. Antes, o sentido era da legalidade, agora é ético. E isso porque não adianta eu aplicar a legalidade se eu estarei ferindo o conteúdo ético. Tenho que levar em consideração o princípio da dignidade humana, o fundamento do liberalismo político. Tenho que considerar a dignidade da pessoa humana.”
Leia a entrevista:
ConJur — O senhor acompanhou a elaboração da Constituição de 1988. Por que o senhor acha que tantos temas diferentes foram incluídos na Carta?
Nagib Slaibi — Adotou-se na Constituição um padrão internacional do liberalismo. Na época, Afonso Arinos, Fernando Henrique, Luiz Inácio Lula da Silva, então políticos mais ligados à esquerda, queriam a instituição do Estado Social de Direito, assim como previa a Constituição italiana de 1948, mas a turma do centrão derrubou isso. Então, estabeleceu-se o Estado Democrático de Direito, no artigo 1º, que significa justamente um Estado liberal. Mas mesmo sendo liberal, não se pode evitar a questão social. Como não falar sobre dos direitos da mulher, da criança ou à educação? Mas pelo que se vê, o fato de estar escrito na Constituição não significa coisa alguma. A prática é mais importante do que o texto.
ConJur — O senhor acha que a Justiça tem conseguido fazer valer a Constituição?
Nagib Slaibi — A Justiça é a única que pode fazer valer a Constituição. E por quê? Porque a Justiça não resolve mais causas entre pessoas iguais. Raramente eu tenho uma ação entre pessoas em idêntica condição. O que temos são pessoas forçadas a ir ao Poder Judiciário para enfrentar forças econômicas e sociais mais poderosas, entende? O cidadão vem requerer ressarcimento da viagem que não deu certo, o plano de saúde para o companheiro gay, remédio… A Justiça atende a essas reivindicações? Claro que não atende. Primeiro porque o nosso sistema foi montado para julgar ações entre pessoas iguais. Mas hoje é diferente. Por exemplo: o governador do nosso estado, assim como o de tantos outros, está protelando o pagamento de 500 mil funcionários, dos quais dependem talvez mais um milhão de outras pessoas. Eles não recebem. Onde eles vão reclamar? Essa nossa demanda é diversificada. O Sergio Moro, com o combate aos corruptos também atende a uma demanda diferente porque a Justiça Criminal, até então, era só para o pobre, não era?
A Justiça Criminal falava que era só para o pobre, não é assim? O Michel Foucault, que esteve aqui na década 1970, falava “vigiar e punir”, com a Justiça Cível vigiando e a Justiça Criminal punindo. Hoje a coisa mudou: tem que botar na cadeia também os empresários.
ConJur — O Judiciário não acompanha o novo perfil das causas?
Nagib Slaibi — Estamos mudando. Eu estive em uma reunião, que estavam presentes a corregedora-geral de Justiça [desembargadora Maria Augusta Vaz] e membros do Ministério Público, da Defensoria Pública e da Ordem dos Advogados do Brasil, sobre o sistema de informatização da Vara de Execução Penal, que tem uns 220 mil processos. Temos 50 mil presos [no Rio de Janeiro] e ainda não temos audiência de apresentação para todos. Então, a Justiça melhorou? Não, mas temos a visão de que podemos. Veja agora o novo Código de Processo Civil que implantou várias coisas boas.
ConJur — Temos demandas de uma parte da sociedade carente de políticas públicas. A isso, soma-se a indignação popular com os casos de corrupção. Isso pode levar o Judiciário a julgar com base nos apelos da população?
Nagib Slaibi — Essa é uma visão interessante. Na França, até o século XVIII, todos os juízes eram nobres. Quando chegou a revolução francesa, proibiram os juízes de resolver questões públicas, só podiam solucionar questões privadas. Hoje, o nosso padrão é da Justiça com juízes de jurisdição universal, conhecendo todas as causas. A nossa Constituição tem regra, de acordo com as declarações internacionais, de que não se pode denegar o acesso à Justiça. O cidadão pode requerer qualquer coisa, e eu até posso indeferir, mas a gente tem que garantir o direito dele requerer porque isso é válvula de escape das situações de pressão. E a Justiça tem poder. Se eu mando fazer um troço e ninguém faz, mando conduzir. A lei prevê isso. Somos [no Rio de Janeiro] 860 magistrados, 180 desembargadores, mais de 200 mil advogados, 15 mil funcionários [da Justiça estadual]. E não somos nobres. Posso te assegurar que os promotores, os advogados e os juízes não são nobres. Assim como trabalhamos para uma clientela que na verdade não podemos dizer que é formada só de pobre, ou só da classe média, ou só de ricos. E claro, entre nós há gente com ideias diferentes. Eu sou Vasco, tem gente que é Flamengo. Então, a Justiça reproduz a sociedade na qual estamos inseridos. Há uma piada horrorosa de que tem juiz que indefere Habeas Corpus até para a própria mãe só para manter a opinião. Por isso há o colegiado. No Órgão Especial, julgam 25. Um dá provimento [à causa], o outro nega. Afirmar a unanimidade em uma sociedade dispare e diversificada é impossível.
ConJur — O senhor é um dos que mais diverge nas sessões do Órgão Especial. Por quê?
Nagib Slaibi — O juiz é um contestador. Somos convocados para a sessão, eles publicam a pauta, tomo conhecimento do que vai ser julgado e leio um por um. Tem uns [processos] que não entendo, tem outros que podem ter várias soluções, têm outros que eu aguardo o voto do relator. Agora os que eu estou mais ou menos a par, analiso e faço as anotações.
ConJur — Em seus votos, o senhor chama muito atenção para questões técnicas.
Nagib Slaibi — Sou muito legalista. É mania de juiz velho. A lei e a Constituição são, para mim, muito importantes. Agora, não ligo muito para as questões preliminares do processo. Meus assessores falam que eu estou sempre querendo ultrapassar
ConJur — E ir para o mérito…
É. E sou legalista. Diz a minha irmã que eu sou o símbolo do conservadorismo, pois sou mineiro, católico devoto de Santa Terezinha e ainda sou juiz. [risos] É, realmente sou um conservador. Agora, gosto da questão do direito social. Fico preocupado com as questões de Direito Constitucional, que dizem respeito às causas coletivas.
ConJur — O senhor acha que, nas causas com grande apelo social, há o risco de se deixar a tecnicidade um pouco de lado?
Nagib Slaibi — O Código de Processo Civil diz que o juiz não pode se eximir de sentenciar ou despachar alegando lacuna ou obscuridade da lei. Então, por exemplo, não é possível deixar de despachar se a lei não fala nada ou for obscura. Um exemplo é a causa homoafetiva. A lei não prevê nada e o máximo que temos é a decisão do Supremo Tribunal Federal, em que o Carlos Ayres Britto [ministro aposentado] foi o relator, que diz que não pode haver discriminação. Então, eu tenho que julgar uma causa. O artigo 126 do antigo código dizia que, no julgamento da lide, cabe ao juiz aplicar as normas legais e as regras de conduta decorrentes da lei. Não as havendo, aplicará, por analogia, os costumes e os princípios gerais do direito. Já o artigo 8º do novo CPC trouxe uma redação muito mais inteligente, que diz que o juiz tem que julgar as causas de acordo com o seu fim social e com o princípio de dignidade da pessoa humana. Antes, o sentido era da legalidade, agora é ético. E isso porque não adianta eu aplicar a legalidade se eu estarei ferindo o conteúdo ético. Tenho que levar em consideração o princípio da dignidade humana e o fundamento do liberalismo político. Está na lei, na Declaração de Direitos Humanos da ONU. O princípio da dignidade humana significa tratar a pessoa pelo simples fato de ser uma pessoa. Não é a lei ou a declaração que concedem os direitos, esses direitos decorrem da sua própria condição humana. Esse fundamento, que vem do Renascimento, é o que vale.
ConJur — Por causa da crise política e econômica, tem se dito, principalmente no plano internacional, que o Brasil vive uma crise constitucional. O senhor concorda?
Nagib Slaibi — Acho que estão dizendo que a Constituição e a Justiça é que produzem o Direito. O Direito não é posto pelo legislador ou pelo juiz. Aliás, o juiz apenas cumpre o direito, que é reconhecido pela própria sociedade.
ConJur — O senhor acha que o Brasil sairá um país melhor dessa crise?
Nagib Slaibi — Nós já estamos aprendendo com aquela votação no domingo [17 de abril, quando a Câmara aprovou a abertura do processo doimpeachment da presidente afastada Dilma Rousseff], com os fundamentos que foram apresentados. O que me aborrece é que aquele troço passou no mundo inteiro. Mas sou otimista. É muito importante passar por isso. As instituições estão reagindo.
Fonte: ConJur