Notícias | 07 de novembro de 2016 15:49

‘Judiciário não permitirá que a crise financeira do Estado seja usada para rasgar a Constituição’, diz presidente do TJ

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O presidente do Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro, Luiz Fernando Ribeiro de Carvalho, alertou que o pacote do governo poderá acarretar o sucateamento da Justiça, com o consequente fechamento de fóruns, diante de uma apropriação pelo Estado do Rio de Janeiro do Fundo Especial do TJ-RJ. Ele afirmou que o Poder Judiciário não permitirá que a crise financeira do Estado seja usada para justificar o desrespeito dos princípios da independência e da separação dos poderes, em prejuízo a milhares de pessoas que têm demandas na Justiça.

A declaração, enfática, que ocupou um relato de nove páginas, foi feita nesta segunda-feira (7), na abertura da sessão do Órgão Especial. O presidente do tribunal acrescentou que o governador Luiz Fernando Pezão reeditou projetos de lei que já haviam sido questionados pelo Poder Judiciário, pelo Ministério Público, pela Defensoria Pública e por entidades, quando da sua primeira discussão, face às inúmeras inconstitucionalidades.

“Agora, novamente reedita algumas propostas que além de inconstitucionais, não salvam o Poder Executivo, mas quebram o Poder Judiciário. Um verdadeiro “abraço do afogado”, uma solução que importa no naufrágio de todos, ainda que sua causa não tenha decorrido do Poder Judiciário” – acrescentou o desembargador.

Leia na íntegra o discurso do presidente do TJ-RJ, desembargador Luiz Fernando Ribeiro de Carvalho:

Prezados membros do Órgão Especial,

Como amplamente noticiado nos jornais, na última sexta-feira, o Poder Executivo encaminhou para a Alerj projetos de lei com medidas para enfrentar a grave crise financeira. Ainda que seja necessária a adoção de medidas emergenciais, não há como se aceitar que as propostas possam ferir princípios constitucionais que são a base do Estado Democrático de Direito, tal como o da Separação de Poderes.

Nos termos do artigo 2o da Constituição Federal, os três Poderes da República são independentes e harmônicos entre si. Por óbvio, ainda que sob argumento do difícil momento de crise, não pode um Poder se sobrepor a outro, como, evidentemente, pretende o Poder Executivo Estadual.

É inegável que o Poder Judiciário é sensível à crise. No final do ano de 2014, o Tribunal de Justiça do Estado do Rio de Janeiro emprestou 400 milhões de reais para o Governo do Estado. Tal quantia foi fundamental para que o Governador Luiz Fernando Pezão pudesse fechar as suas contas e, afastando as restrições da Lei de Responsabilidade Fiscal, tomar posse. O valor emprestado, que atualmente corrigido supera meio bilhão de reais – repito: meio bilhão de reais -, ainda não foi devolvido pelo Poder Executivo, causando evidente prejuízo ao Poder Judiciário.

Ao solicitar o empréstimo da quantia, o Governador do Estado estabeleceu as condições de pagamento e de correção dos valores. No entanto, não cumpriu os termos por ele mesmo fixados. Além disto, sensível à gravidade da crise e aos apelos do Governo do Estado, no início de 2015, o Tribunal de Justiça encaminhou para a ALERJ projeto de Lei conjunto com o Poder Executivo para liberação de valores de depósitos judiciais, o que permitiu o Poder Executivo lançar mão de mais de 7 bilhões de reais de depósitos judiciais (aqui também vale a repetição: mais de 7 bilhões de reais). Isto totaliza mais de 12 bilhões de reais se computados os valores dos precatórios (repita-se mais de 12 bilhões de reais).

Em razão dos levantamentos, o Poder Executivo se comprometeu, nas leis complementares estaduais que permitiram a utilização dos referidos recursos, a pagar ao Poder Judiciário os valores que antes eram honrados pelo Banco do Brasil e que constituem fonte essencial de recursos para o custeio do Poder Judiciário. No entanto, diante da ausência dos repasses previstos em leis, está em débito atualmente em cerca de R$ 100 milhões de reais e, caso continue descumprindo as leis complementares, este débito com o Poder Judiciário será de 130 milhões de reais (repito, 130 milhões de reais) nos próximos dias.

Assim, ciente da crise, da qual certamente também é parte, diante da continuidade de governos, o Poder Executivo deveria ter feito seu “dever de casa”, após ter recebido tamanha verba, embora, infelizmente, não se tenha visto, neste período, esforço efetivo de redução de gastos. Ao contrário, houve  manutenção de despesas expressivas com propaganda, isenções fiscais e nomeação de inúmeros cargos em comissão, como noticiado na mídia, e de gastos também elevados em obras olímpicas.

Embora a crise atinja a todos, certamente a solução não pode passar pela quebra do princípio da independência dos Poderes, previsto na Constituição Federal e garantia do Estado Democrático de Direito.  O artigo 168 da Constituição Federal determina o repasse do duodécimo para o Poder Judiciário, Ministério Público e Defensoria Pública até o dia 20 de cada mês e a Lei de Responsabilidade Fiscal estabelece os limites de repasses de 49% para o Poder Executivo, de 6% para o Poder Judiciário, de 2% para o Ministério Público, de 3% para o Poder Legislativo, incluindo o Tribunal de Contas.

Em outras palavras, o Poder Executivo tem a chave do cofre, mas, embora tenha direito à maior fatia, não é o dono de todo o valor que está dentro dele. Assim, não pode se apropriar de parcela que não lhe pertence, ainda que em um período de gravíssima crise financeira. Lembre-se que os limites da LRF funcionam como teto. Ou seja, não podem os chefes dos Poderes e de outras Instituições gastar mais do que o percentual estabelecido, sob pena de responderem pessoalmente pelos gastos e de terem que se adequar aos limites, inclusive com a demissão de servidores.

Ainda que a crise esteja relacionada à gestão administrativa, função precípua do Poder Executivo e não dos demais Poderes, diante da queda de arrecadação, todos são obrigados a se adequar aos estreitos limites da LRF. No entanto, isto não afasta o dever do Poder Executivo de repassar as verbas previstas na lei orçamentária, que também é pilar do princípio do equilíbrio e controle entre os Poderes.

De fato, no processo de elaboração da Lei Orçamentária, é o Poder Executivo que indica qual a receita que irá obter (até porque é o responsável pela gestão das finanças). Após, encaminha o projeto de lei orçamentária para exame e aprovação do Poder Legislativo. Com a conversão em lei, caberá a todos os Poderes se adequarem aos valores da arrecadação, conforme estabelecido em Lei.

Ao pretender estabelecer um cálculo mensal da arrecadação o Poder Executivo subjuga os demais Poderes; de um lado subtrai do Poder Legislativo a possibilidade de analisar e sancionar a arrecadação prevista; de outro trata os demais Poderes e instituições tal como se fossem departamentos seus, já que a cada mês teriam o repasse de acordo com um valor apontado unilateralmente pelo Poder Executivo, sem qualquer controle.

O absurdo da proposta impõe a todos os Poderes e Instituições o caos financeiro que inviabiliza a gestão, já que os chefes dos demais Poderes e Instituições não teriam condições de programar os gastos, diante de uma arrecadação que seria mensalmente informada, unilateralmente, pelo Poder Executivo.

Como podem os demais Poderes e Instituições se curvarem à mera apresentação unilateral de valor arrecadado por quem se recusa a cumprir os termos da lei orçamentária, fundamental para o equilíbrio dos Poderes? Como aceitar que o Poder Executivo que retém indevidamente valores de duodécimos e que criou, unilateralmente, um calendário de pagamento no qual trata os demais Poderes e Instituições como se fossem autarquias suas, possa estabelecer, mês a mês, qual o valor que entende que deve ser repassado?

Além disso, essa técnica proposta tornará incerta a remuneração de magistrados e servidores. Não haverá quantias certas. Não haverá dias certos. E sem dúvida haverá meses sem pagamento. Não há dúvida que se hoje já há retenção indevida de valores pelo Poder Executivo, tal situação tende a se agravar se o cálculo for mensal, uma vez que estará desprovido de qualquer forma de controle, contrariando as disposições constitucionais e legais.  Assim, inadmissível a criação de regra que permita a disponibilização de repasse a critério e segundo apuração de um único Poder, tal como se a integralidade das verbas arrecadadas lhe pertencessem.

Lembre-se que, embora tivesse direito a 6% da receita corrente do Estado, durante muitos anos, quando não havia crise na arrecadação, o Poder Judiciário apenas requereu a transferência da importância correspondente à sua folha salarial, tendo o valor restante sido incorporado ao Poder Executivo. Tivessem os duodécimos sido integralmente repassados, certamente poderia o Poder Judiciário contribuir ainda mais para a gestão da crise, já que poderia lançar mão dos superávits financeiros que lhe pertenciam e que não lhe foram repassados.

A queda de arrecadação importa na diminuição do duodécimo destinado a cada um dos Poderes e Instituições, de acordo com os limites acima referidos, e pode causar possível adequação de gastos, mas não permite a transferência de valores em quantia menor do que o estabelecido em lei, em data posterior à determinada na Constituição Federal ou na inobservância do controle estabelecido para o Poder Executivo na lei orçamentária. Escorando-se na crise financeira a que deu causa, o Poder Executivo demonstra seu interesse de lançar mão de recursos do Fundo Especial do Poder Judiciário, protegidos pelo artigo 98, § 2o da Constituição Federal, que também constitui garantia ao Princípio da Autonomia do Poder Judiciário.

A proposta, por óbvio, não pode ser aprovada pela ALERJ já que somente o Poder Judiciário poderia ter iniciativa de tal projeto de lei, diante de sua autonomia administrativa e financeira assegurada pelo artigo 99 da Constituição Federal. Ainda assim, não se pode deixar de pontuar que não obstante o valor de 400 milhões de reais emprestados pelo Fundo Especial do Tribunal de Justiça e ainda não devolvidos pelo Poder Executivo, ao levantamento de mais de 12 bilhões de reais referentes a depósitos judiciais e precatórios, ao débito de mais de 130 milhões de reais decorrentes do descumprimento das leis complementares estaduais, pretende o Poder Executivo secar, definitivamente, a fonte de custeio do Poder Judiciário, o que irá tornar inviável o funcionamento da atividade jurisdicional.

Os valores do referido Fundo Especial são destinados ao custeio do Poder Judiciário Estadual, fator indispensável para a independência deste Poder. De fato, até a criação do Fundo Especial, o Poder Judiciário dependia do Poder Executivo para obtenção de verbas necessárias ao seu custeio, como luz, telefone, serviços terceirizados de limpeza, obras, materiais de consumo, equipamentos de informática, papel etc. A Constituição Federal e a Lei Estadual vedam a utilização de tais receitas para pagamento de pessoal.

Quanto aos aposentados, o projeto tem uma singularidade: os aposentados, quando no serviço ativo, contribuíram para o RIOPREVIDÊNCIA, autarquia previdenciária, mas quem lhes prestará os proventos de aposentadoria será o Tribunal. O que é isso? Que absurdo é esse?

É importante registrar que a apropriação de tais verbas pelo Poder Executivo – mesmo que, por absurdo, fosse possível desconsiderar a inconstitucionalidade de medidas e a afronta à independência dos Poderes -, não seria suficiente para resolver o problema econômico hoje apresentado pelo Estado e ainda causaria, em curtíssimo espaço de tempo, a paralisação de atividades do Poder Judiciário, que ficaria sem fonte de custeio e entraria em colapso financeiro.

Cabe destacar, ainda, que os valores do Fundo Especial são arrecadados basicamente com o pagamento de custas judiciais, realizado pelas partes que ingressam no Poder Judiciário, que não sejam beneficiárias da gratuidade de justiça, ou seja, o sustento é feito apenas por pessoas que utilizaram o serviço e que tenham condições financeiras de arcar com o pagamento sem prejuízo do seu próprio sustento. Hoje, cerca de 2/3 dos processos que tramitam no Poder Judiciário Estadual possuem gratuidade de justiça.

Admitida a inconstitucional, absurda e incabível apropriação da verba do Fundo Especial, teríamos o sucateamento do serviço judiciário, tal como, infelizmente, ocorre com a saúde, a educação e segurança públicas, sob a gestão do Poder Executivo. Com isto, inúmeras pessoas deixariam de ser atendidas pelo Poder Judiciário. Sem recursos suficientes, haverá necessária redução do serviço prestado, estabelecimento de escalas de atendimento ou até fechamento de Foruns, com consequências gravosas para a população. Lembre-se que o Poder Judiciário tem hoje 81 Comarcas que cobrem todo o Estado do Rio de Janeiro. Imagine-se, por exemplo, o fechamento de Comarcas ou de varas em locais da importância que possuem Niterói, Nova Iguaçu, Duque de Caxias, Campos dos Goytacazes, dentre outras.

Medidas de proteção à saúde, de direito de família, tais como alimentos, casos de violência doméstica, de defesa dos consumidores lesados, de recuperação de empresas, casos de prisões ilegais, de recuperação de créditos do executivo fiscal, dentre inúmeras outras ficariam desguarnecidas se houvesse a perda da autonomia financeira do Poder Judiciário, que é garantida pela Constituição Federal.

No final do ano passado, em reunião no Palácio Guanabara, o Governador do Estado do Rio de Janeiro, Luiz Fernando Pezão, pediu a boa vontade do Poder Judiciário em relação à crise. Imediatamente, respondi:

– Boa vontade, não falta, Governador. O que falta é oxigênio.

Não se pode negar a colaboração do Poder Judiciário diante da crise financeira do Estado, como demonstram os empréstimos feitos e o prejuízo imposto ao Judiciário em razão dos expressivos valores ainda não restituídos. Além disto, o Poder Judiciário se prontificou a realizar mutirões de julgamentos de executivos fiscais – note-se que o projeto Concilia Rio feito com a Prefeitura do Município do Rio de Janeiro negociou mais de dois bilhões de reais -, o que nunca foi levado adiante pelo Poder Executivo Estadual.

Em recente artigo publicado no Globo denominado “Sem bote salva-vidas”, o Governador do Estado, Luiz Fernando Pezão, disse que está aberto a dialogar. No entanto, reeditou projetos de lei que já haviam sido questionados pelo Poder Judiciário, pelo Ministério Público, pela Defensoria Pública e por entidades, quando da sua primeira discussão, face às inúmeras inconstitucionalidades. Agora, novamente reedita algumas propostas que além de inconstitucionais, não salvam o Poder Executivo, mas quebram o Poder Judiciário. Um verdadeiro “abraço do afogado”, uma solução que importa no naufrágio de todos, ainda que sua causa não tenha decorrido do Poder Judiciário.

O Poder Judiciário não irá permitir que a crise financeira do Estado seja utilizada como motivo para que seja rasgada a Constituição Federal, desrespeitados os princípios da independência e da separação dos Poderes, com a quebra da autonomia financeira e orçamentária, em evidente prejuízo para o Estado Democrático de Direito e a milhares de pessoas que, diariamente, têm suas demandas analisadas e julgadas pela Justiça.