O jornal O Globo publicou, na edição de terça-feira (09), uma entrevista com a juíza Adriana Ramos de Mello, do 1º Juizado de Violência Doméstica contra a Mulher. O tema do debate foi sobre a inclusão do femicídio no Código Penal. “Ela já vem sofrendo, há sempre rastro de violência que culmina com morte. Enquanto a gente não colocar isso no Código Penal de forma clara, esse fenômeno persistirá, invisível”, afirmou a magistrada.
No último dia 4, a magistrada coordenou a 30ª Reunião do Fórum Permanente de Violência Doméstica, Familiar e de Gênero, que teve como tema o Femicídio/Feminicídio. O encontro contou com a presença do presidente da Amaerj, juiz Rossidélio Lopes, além de debate com a juíza Raquel Santos Pereira Chrispino, Aline Yamamoto, Leila Linhares Barsted e Wânia Pasinato.
Confira a íntegra:
Conte algo que não sei.
Em 1830, o Código Penal em vigor no Brasil previa o femicídio. O marido podia matar a mulher flagrada em adultério e o homem com quem ela estava. Se esse homem tivesse um cargo alto, podia não ser punido com a morte. Já se fosse uma pessoa do povo, morria.
O que é femicídio?
O assassinato de mulheres em razão do gênero, pela condição de mulher. Ocorre basicamente no âmbito doméstico e familiar. A mulher é morta por ser mulher. O femicídio é o resultado de um histórico de violência que aquela mulher vivenciou. No meu doutorado, estudo 38 processos de homicídios de mulheres no Rio, de 2000 a 2010. Elas morreram quando quiseram romper com a relação.
De onde vem o conceito?
A socióloga americana Diana Russell usou o termo femicídio (femicide, em inglês). Depois o tema começou a ser estudado no México, por causa de crimes contra garotas adolescentes em Cidade Juárez. Marcela Lagarde, a antropóloga mexicana, adotou o nome “feminicídio”.
Qual a diferença?
O femicídio era o assassinato de uma mulher por ódio ou misoginia (aversão a mulheres), com mortes cruéis, partes da face e seios destruídos. No México, foi acrescentado outro componente, a tolerância do Estado com esses crimes, o que garante a impunidade. Não se buscava culpado. Houve comoção no México quando cinco corpos de garotas foram encontrados. Elas eram violentadas, torturadas e mortas. O México foi condenado na OEA a dar reparação às famílias das cinco meninas.
Onde já está tipificado?
No México, vários estados tipificaram o feminicídio. Também na Guatemala, em El Salvador, em Honduras, na Costa Rica. O Chile tipificou o femicídio íntimo (cometido por conhecidos). Peru, Bolívia e Venezuela tipificaram.
Por que tipificar se o homicídio está no Código Penal?
O que não se nomeia não existe. Se você tipifica, pode melhorar os registros, criar políticas públicas. As nossas mulheres estão morrendo, e isso não está sendo discutido. Um homicídio de mulher é muitas vezes tratado como um crime passional. A pior coisa que se pode dizer de um homicídio de uma mulher é que ele foi passional. Porque você desqualifica, diz que foi na ira, na raiva, e não é. O feminicídio é um processo de violência.
Não é algo inesperado, então.
Ela já vem sofrendo, há sempre rastro de violência que culmina com morte. Enquanto a gente não colocar isso no Código Penal de forma clara, esse fenômeno persistirá, invisível. “Ah, foi crime passional, matou porque estava com ciúmes.” A tendência é desacreditar a mulher. “Também, ela estava à noite na rua. Olha, ela usava uma roupa indecente. Ah, é mulher de malandro, apanhou e nunca teve coragem de sair da relação.” A pena poderia ser a mesma do homicídio qualificado, mas registrado como feminicídio. Nem toda morte de mulher é assim. Assalto comum? Tiroteio? Não é. É facílimo de identificar.
Femicídio ou feminicídio?
Para mim, tanto faz, embora, na academia, se faça distinção. No Brasil se debate o termo “feminicídio”, com uma dimensão que diz respeito a nós, à tolerância do Estado com os crimes. Você me pergunta por que tipificar. Para que os crimes não fiquem impunes.
Fonte: O Globo