O Judiciário do Estado do Rio de Janeiro não parou durante a pandemia do coronavírus. O aumento de produtividade de magistrados e servidores foi ressaltado no artigo “Mundo novo”, escrito pelo presidente da AMAERJ, Felipe Gonçalves, e pela 1ª vice-presidente da Associação, Teresa Castro Neves. No texto, publicado nesta quinta-feira (16) no site do jornal “O Estado de S. Paulo”, os magistrados fazem um balanço das medidas tomadas pelo TJ-RJ, das mudanças drásticas na forma de trabalho e projetam o legado para a Justiça.
“Se havia alguma dúvida quanto à capacidade de produção por meio remoto, esta ficou superada. Os magistrados, servidores e colaboradores não somente estão se adaptando em tempo recorde às estratégias de enfrentamento da crise. Todos também fazem valer a essencialidade própria de um Poder da República. Estão dando uma lição de cidadania”, destacam.
Mundo novo
A humanidade está sempre se reinventando. A pandemia da covid-19, no entanto, nos obrigou a uma transformação mais drástica e rápida. O vírus não nos deu escolha. Há especialistas encarando a crise como uma oportunidade a ser explorada. Já existem, até mesmo, cursos sobre o tema. Não é diferente com o Poder Judiciário fluminense. Fomos forçados a entrar na era digital, nas relações virtuais, de um dia para outro. A crise se apresentou e não deixou espaço a debates e conjecturas. Vieram inúmeras ações. Com ela, erros e acertos. O futuro não será o mesmo. Ao fim do isolamento, teremos uma nova forma de fazer Justiça, de prestar a jurisdição.
Em 12 de março de 2020, após reunião entre os chefes dos três Poderes no Estado do Rio e autoridades diversas, entendeu-se urgente a necessidade de diminuir a circulação de pessoas nas repartições públicas. No caso do Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro, onde só no Foro Central passam de 40 mil a 50 mil pessoas por dia, não havia como impedir-se a contaminação comunitária. Por esta razão, no mesmo dia, a Presidência e a Corregedoria baixaram o Ato Conjunto 04/2020, com a adoção de medidas preventivas contra a mais agressiva enfermidade que se tem notícia nos últimos cem anos.
As medidas vedaram o atendimento no balcão das serventias. Inicialmente, organizou-se a escala de um servidor por dia só para o expediente interno. Os prazos processuais e as audiências foram suspensos de 16 a 31 de março. No primeiro grau, as audiências limitaram-se às videoconferências. Na segunda instância, apenas sessões virtuais eram realizadas. Mesmo assim, ainda havia trabalho presencial de servidores e magistrados no Fórum, sem atendimento ao público externo. Nestes plantões presenciais, era impossível o veto ao acesso do advogado.
Sob a sigla RETE, preparou-se um regime de teletrabalho. O Tribunal de Justiça, a toque de caixa, teve que aumentar o número de suas licenças para o trabalho remoto. Tinha cerca de 2.150. Adquiriu mais 4.000.
Por óbvio, o sistema informatizado não estava preparado para mudança tão repentina, mas a Diretoria-Geral de Tecnologia da Informação e Comunicação de Dados (DGTEC) o adaptou, em uma dedicação sem igual, com trabalho presencial e risco de seus integrantes. Tudo para não deixar a Justiça parar, para atender ao cidadão, vulnerável diante deste novo quadro.
Logo na semana seguinte, com o agravamento dos contágios e da compreensão dos dias que se seguiriam, em face das projeções sobre a pandemia, as medidas, que já eram duras, tornaram-se ainda mais restritivas.
Os cartórios e gabinetes foram fechados, mantendo-se os funcionários e magistrados de sobreaviso em casa, mas trabalhando, podendo ser exigido o comparecimento pessoal em situações de urgência. Implementou-se, por meio do Ato Conjunto 06/2020, o Regime Diferenciado de Atendimento de Urgência (RDAU).
Em 28 de março de 2020, sobreveio o Ato Normativo 08/2020, que estendeu a suspensão dos prazos dos processos físicos e eletrônicos até 30 de abril de 2020, nos termos da Resolução 13/2020 do CNJ, mantido o plantão extraordinário.
Em que pesem as medidas extremamente restritivas e a alteração drástica da forma de trabalho, onde funcionários e magistrados se viram em casa, equacionando o cuidado de filhos, os afazeres domésticos e a jornada de trabalho remoto, em recente pesquisa estatística encomendada pela AMAERJ à Diretoria de Apoio aos Órgãos Jurisdicionais do TJ-RJ (DGJUR) constatou-se o aumento da produtividade quando comparada ao mesmo período do ano anterior.
Em março de 2019, no TJ-RJ, foram proferidas 146.247 sentenças, 169.058 decisões e 424.048 despachos, contra 195.293 sentenças, 179.974 decisões e 461.237 despachos em março de 2020. Aumentos de 33,54%, 6,46% e 8,77%, respectivamente.
O tombamento, naturalmente, foi menor, já que a distribuição dos processos físicos limitava-se às medidas urgentes. Foram 123.457 processos tombados em março de 2019, contra 108.110 em março de 2020 (diminuição de 12,43%). Ainda assim, foram arquivados mais processos: 174.426 em março de 2019 e 186.008 em março último, diferença de 6,64% a mais.
A segunda instância, severamente prejudicada em decorrência da completa paralisação da distribuição de 16 a 31 de março, também produziu mais. Foram 17.219 julgados, 4.467 decisões e 26.615 despachos em março de 2019, contra 17.729, 4.557 e 28.550 em março de 2020, incremento de 2,96%, 2,01% e 7,27%.
Se havia alguma dúvida quanto à capacidade de produção por meio remoto, esta ficou superada. E mais medidas estão vindo. A Comissão Judiciária de Articulação dos Juizados Especiais (COJES) regulamentou as sessões virtuais das Turmas Recursais. A Vara de Execuções Penais adiantou a migração de seu sistema informatizado para o Sistema Eletrônico de Execução Unificado (SEEU).
Todas essas medidas propiciam a produção distanciada. Os que já trabalham com a tecnologia na segunda instância, onde quase todos os processos são eletrônicos e as sessões virtuais, rotineiras, deram um passo à frente. A adaptação se deu de modo menos traumático. Já os setores em que a ação presencial e o processo físico eram a regra, sofrem mais neste processo de adaptação.
É verdade que muito há a ser melhorado e implementado. Afinal, nem todos os servidores têm computadores exclusivos em casa com capacidade de operar o sistema. Muitos o compartilhavam com parentes. Até agora nem todos têm certificados para alimentar o sistema informatizado, no que dependem de colegas para fazê-lo. Igualmente, muitos nunca trabalharam remotamente nem têm conexão adequada de internet em casa. Entre todos os problemas, o que nos parece ser o mais grave, é a existência de varas em que os processos físicos são a maioria.
Todos teremos que nos adaptar, inclusive os advogados, a Defensoria Pública, as Procuradorias do Estado e dos Municípios e o Ministério Público. Sem falar no público em geral. Como tomar depoimento de testemunhas em casa? Terão elas meios de ingressar eletronicamente e prestá-los? As partes têm meios de fazê-lo ou não? São muitos os desafios pela frente. Iremos superá-los.
Os magistrados, servidores e colaboradores não somente estão se adaptando em tempo recorde às estratégias de enfrentamento da crise. Todos também fazem valer a essencialidade própria de um Poder da República. Estão dando uma lição de cidadania.
A tormenta passará. Ficarão o legado das boas práticas e as ferramentas desenvolvidas para um momento transitório. Legados e ferramentas que, decerto, se prestarão ao desenho de um mundo novo, transformado para melhor.
*Felipe Carvalho Gonçalves da Silva, juiz do Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro (TJ-RJ) e presidente da Associação dos Magistrados do Estado do Rio de Janeiro (AMAERJ)
*Teresa de Andrade Castro Neves, desembargadora do TJ-RJ e vice-presidente da AMAERJ