O site ConJur publicou nesta quarta-feira (26) o artigo “Delegacia da Mulher, uma necessidade”, escrito pelo desembargador Wagner Cinelli, do Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro. No texto, o magistrado ressaltou a importância da Delegacia Especial de Atendimento à Mulher (Deam).
“Passadas quase quatro décadas desde a primeira Deam, soa tímido que tão poucas cidades tenham sido contempladas com essa delegacia. Precisamos instalar novas e reforçar as existentes, com portas abertas 24 horas por dia, em respeito à Constituição, à lei e, o que é fundamental, à demanda social. Afinal, a violência contra a mulher é grave, urgente e a vítima não pode esperar.”
Wagner Cinelli é autor do livro “Sobre ela: uma história de violência” e diretor do premiado curta-metragem de animação “Sobre Ela”.
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Confira a íntegra do artigo:
Delegacia da Mulher, uma necessidade
A mulher, em todos os tempos e lugares, tem sido vítima de violência doméstica e, na maioria das vezes, o agressor é o homem com quem tem ou teve vínculo afetivo. Relatos dessas vítimas mostram sua descrença nas instituições, preferindo não registrar as agressões ou, quando o fazem, demonstrando insatisfação por considerarem o ambiente policial adverso e/ou porque não advém a consequência esperada.
Há histórias de mulheres que procuraram a delegacia e ali não foram levadas a sério ou então foram maltratadas pelos policiais com perguntas do tipo: “O que você fez para ele te bater?”. Ocorre uma segunda violência, que é chamada de vitimização secundária. A primária é aquela causada pelo autor do fato quando praticou o crime e a secundária é a do agente público que, ao invés de fazer seu trabalho, não dá importância à vítima ou a trata com desrespeito.
O movimento feminista de muito reclamava a criação de delegacias voltadas para o atendimento da mulher, com equipamentos adequados e pessoal treinado para melhor receber e amparar a vítima de violência.
Surge, então, a Delegacia Especial de Atendimento à Mulher, também chamada de Delegacia de Defesa da Mulher ou simplesmente Delegacia da Mulher (Deam), sendo que a primeira foi instalada em 6/8/1985 na cidade de São Paulo. Em sequência, outras unidades da federação inauguraram Deams, inicialmente nas capitais.
A proposta é oferecer uma escuta qualificada, com mulheres policiais atendendo as vítimas, a contribuir para uma recepção mais acolhedora e sem preconceito. Vejamos o caso de Rose, que recorreu à Deam.
Ela era vítima continuada de um ex-namorado que infernizava sua vida com ameaças, humilhações e agressões físicas. Venceu o medo, procurou a Delegacia da Mulher, obteve medida protetiva e passou a viver em paz. Suas palavras: “Sempre que fico sabendo de uma história dessa natureza, conto o que já passei e encorajo outras mulheres a irem à delegacia e a reagirem porque, para mim, a Justiça funcionou” (“Dossiê das Delegacias da Mulher”, Revista AzMina, em 31/10/2016).
Outro caso de satisfação com a Deam é o de Ana Cláudia, que já tinha recebido várias ameaças de morte de seu companheiro. Um dia, assustou-se quando encontrou uma cova em seu quintal feita por ele e procurou a autoridade policial: “Eu só estou viva hoje porque procurei ajuda, eu fui na delegacia da mulher e eles me encaminharam para o abrigo” (“‘Ele cavou uma cova para mim’, diz mulher vítima da violência”, G1, em 30/7/2020).
A Constituição Federal de 1988 entrou em cena, dando mais substrato à Delegacia da Mulher, notadamente por afirmar a igualdade de direitos e deveres entre homens e mulheres (artigo 5º, I), assim como o dever de o Estado assegurar assistência à família e de criar mecanismos para coibir a violência familiar (artigo 226, § 8º).
Em vigor desde 2006, a Lei Maria da Penha consagrou a importância das Delegacias de Atendimento à Mulher como um dos instrumentos de política pública para coibir a violência doméstica e familiar, inclusive incentivando sua criação (artigos 8º, IV, 12-A e 35, I).
Infelizmente, nem todas as cidades contam com Deams. Na verdade, a grande maioria não as tem, como revelam dados da Pesquisa de Informações Básicas Municipais (Munic), do IBGE, que indicam que, em 2018, apenas 8,3% das cidades brasileiras dispunham de Delegacia da Mulher.
O Projeto de Lei 781/2020, de autoria do senador Rodrigo Cunha (PSDB-AL), tem como um de seus objetivos exatamente propiciar condições para ampliação do número de Deams e, para tanto, prevê o uso de recursos do Fundo Nacional de Segurança Pública (FNSP). Outro foco desse projeto de lei é que as Deams funcionem ininterruptamente, pois, segundo o senador Fabiano Contarato (Rede-ES), “apenas 15% das delegacias especializadas existentes funcionam 24 horas por dia” (“Senado aprova projeto que prevê funcionamento ininterrupto para todas as delegacias da mulher”, G1, em 11/3/2021).
O PL 781 dispõe ainda que o atendimento às vítimas ocorra em sala reservada e preferencialmente por policiais do sexo feminino, que deverão receber treinamento para permitir sejam as vítimas recebidas de forma eficaz e humanitária. Nesse ponto, reafirma o artigo 10-A, caput, da Lei Maria da Penha, que determina que, em qualquer delegacia, o atendimento seja prestado por servidores preferencialmente do sexo feminino e previamente capacitados.
O ideal é que apenas mulheres atuem na Deam, mas as leis têm insistido em servidores “preferencialmente” do sexo feminino, e tal se dá porque o efetivo da Polícia Civil é composto majoritariamente por homens, o que dificulta a manutenção de um quadro exclusivamente feminino.
Passadas quase quatro décadas desde a primeira Deam, soa tímido que tão poucas cidades tenham sido contempladas com essa delegacia. Precisamos instalar novas e reforçar as existentes, com portas abertas 24 horas por dia, em respeito à Constituição, à lei e, o que é fundamental, à demanda social. Afinal, a violência contra a mulher é grave, urgente e a vítima não pode esperar.