* Artigo do juiz Alexandre Chini (Revista Justiça & Cidadania)
A ética é um dos pilares humanos mais enfatizados pela filosofia e por tantos quantos se responsabilizem pelas reflexões sobre justiça. Na verdade, só para ficarmos na Grécia, desde a phýsis dos pré-socráticos, passando pelo idealismo platônico e pelo empirismo aristotélico, e daí em diante, a ética nunca deixou de ser, de alguma forma, o centro das engrenagens que movimentam sistemicamente os pensamentos — que buscam refletir-se nas atitudes — do ser humano.
Qualquer prática desvestida de ética carregará consigo potenciais sombras perniciosas. Um cientista, como lembra o físico austríaco Fritjof Capra, não é responsável apenas pela invenção que atiladamente engendrou e patenteou, mas também, e sobretudo, é moralmente e eticamente responsável pelo impacto que sua maravilha venha a ocasionar ao planeta. São proverbiais as palavras de Oppenheimer, um dos inventores do Projeto Manhattan, cujo produto final foi a conhecida bomba atômica: “Hoje [agosto de 1945], a ciência, que tem se pautado num parâmetro de ceticismo e absenteísmo quase absoluto, experimentou, como nenhum outro ser piedoso jamais o fez, o verdadeiro sentido da palavra ‘pecado’.”
Ética perlustra e anima o ser humano sempre que a “Ecologia Profunda” (cf. o filósofo norueguês Arne Næss) se estabelece. O psicólogo e pedagogo francês Pierre Weil a descreveu como “Roda da Paz”. Em ambos os casos, trata-se de uma visão de ecologia que se contrapõe à antropocêntrica “ecologia rasa” (segundo o mesmo Arne Næss). A Ecologia Profunda possui três pontos equidistantes e pode ser sucintamente descrita como: i) viver em paz consigo mesmo; ii) (com)viver em paz com a (e em) sociedade; e iii) (com)viver em paz com o meio ambiente, o planeta Terra e seus recursos e fontes. Todos os atuais conceitos de “sustentabilidade”, incensados pelo direito, pela administração, pela economia, pela estatística, pela pedagogia, pela epistemologia etc., fincam-se nesse conceito e naqueles que o ecoam e complementam em seu aporte centrado na ecologia(profunda) e em suas implicações mediatas e imediatas. Como se vê, trata-se de um conceito mais abrangente de ecologia, que engloba o indivíduo, sua vida em sociedade e sua participação na sustentação do meio ambiente.
No entanto, esse modo de perceber a realidade, embora universalista em essência, e fundamental para a própria subsistência da raça humana, requer que se desperte no ser humano a consciência gradativamente crescente de que a justiça, identificada com a harmonia na Ecologia Profunda ou na “Roda da Paz”, não necessariamente se manifesta de forma automatária, mas pressupõe um trabalho contínuo de desenvolvimento e conscientização em seu favor. Para esse processo, são indispensáveis a epistemologia (ou filosofia da ciência), que deve abarcar a ecologia em toda a sua tessitura; a pedagogia, refletida no direito desde a formação do futuro operador até um senso de justiça que em todas as instâncias tome a Ecologia Profunda como baliza; e a ciência investigativa de novas soluções sociais pautadas em padrões éticos que “sustentem as atuais gerações sem comprometer as futuras”, nas palavras de Lester Brown, que pioneiramente definiram “sustentabilidade”.
Com essa acepção — da Ecologia Profunda, cujo porto seguro é a ética e a justiça — é que se desenvolveu o conceito de Ecoética, que basicamente reverte (ou transmuta) uma visão e um conjunto de valores cujo paradigma era exclusivamente autoafirmativo (analítico, linear, competitivo, fragmentário, dominador, quantitativo etc.), para um paradigma em que as bases se assentam sobre valores também integrativos(sintéticos, não lineares, cooperativos, sistêmicos, imbuídos de parcerias, qualitativos etc.). Convergem com essa postura pensadores como Albert Einstein, Erwin Schrödinger, Monique Thoenig, Jean-Yves Leloup, Pierre Weil, Fritjof Capra, Roberto Crema, Francesc Torralba, Edgar Morin, Jean Piaget, Maria Montessori, Ilya Prigogine, Humberto Maturana e outros. Não seria anacrônico ou dissonante se citássemos, no mesmo diapasão, Friedrich Nietzsche, Wilhelm von Humboldt e Arthur Schopenhauer, verdadeiros profetas do quanto aqui se esboça.
Esses princípios são transpessoais (e transnacionais) e existem desde a noite dos tempos, embora tenham sido fragmentados por um pujante paradigma (e aparato) tecnocrático cartesiano-newtoniano que parecia precisar turvá-los a fim de afirmar-se com seus conceitos e métodos subjugadores (e “torturadores”, como Francis Bacon expressou explicitamente) da Terra e da natureza. Põe-se em xeque, portanto, um paradigma cuja “constelação de valores” (cf. Thomas Kuhn) derrete como um boneco de neve aos primeiros gorjeios da primavera.
Vêm à luz princípios naturalmente e necessariamente ancorados na pedagogia da transdisciplinaridade, oriunda dos chamados “Estudos da complexidade” e do “Pós-estruturalismo”, a qual opera de modo a ampliar as fronteiras da chamada “ciência moderna” (autoafirmativa) — que de certa forma relegava a ecologia e depreda sem consciência (e sem ética) o planeta — em direção à chamada “Nova Ciência” (integrativa), esta última a que se percebe como importante contribuinte, mas não “imperatriz”, da filosofia, da arte e das tradições sapienciais. Nesse ponto (que, para os antigos pesquisadores das ciências exatas, psicológicas e sociais, poder-se-ia parecer diante de uma esfinge ou de um tabu), cria-se uma interseção entre o que podemos chamar de ponto de vista ético e o que os antropólogos chamam de ponto de vista êmico, que leva em consideração os saberes milenares e atávicos inscritos nas culturas humanas mundo afora. E essa interseção, longe de ser estéril ou condenável, configura ponto fulcral de uma nova abordagem das ciências jurídicas, arquitetada sabiamente na epistemologia (como o faz Luigi Ferrajoli), na pedagogia e nas ciências humanas em geral, incluída aqui a diplomacia, que trabalha com o conceito de bem-estar socioambiental em seu repertório.
Descendo a um particular, a ética, para alguém que pensa sobre o pensamento e suas formas de aplicação social, deve ocorrer sempre, irrestritamente, de modo consciente e autocrítico, pois, ao tornar-se partícipe do diálogo com outrem, na policomunicação que Bateson e a “Escola de Palo Alto” tão bem descrevem em sua “Sociolinguística Interacional”, haurida da Pragmática wittgensteiniana e da Sociolinguística laboviana, é necessário que o dialogante estabeleça uma abertura, uma escuta e uma percepção capazes de amparar não apenas o que é empiricamente perceptível (quantitativo), mas também o que, nos passos da transdisciplinaridade, está entre, através e além (qualitativo) do que se “vê” ou “ouve”. Como Bateson afirma sabiamente, não trocamos informações ao dialogarmos, trocamos comunicações; modificamo-nos uns aos outros em nossos contatos expressivos. Na teia das vozes e dos interesses, cabe ao direito a refinada tarefa de colocar-se como partícipe ético e êmico do que se passa, e ao juiz ser o primus inter pares capaz de localizar, com participação atenciosa e não passiva, sensibilidade, argúcia e compromisso com a Ecoética profunda, o ponto de equilíbrio entre possíveis dialogantes que se desavierem e que a ele recorrerem.
Nesse sentido é que todas as pessoas, por, de alguma forma, serem sempre dialogantes umas com as outras, devem buscar o pensamento reflexivo profundo e comprometido com o que é justo, uma vez que a justiça é um dos princípios universais, herdados nos genes humanos, o que é comprovado pela neurociência. A Justiça, enquanto instituição representada pelo Judiciário, possui, entre outros, este papel pedagógico em seu modus sciendi. A procura e a prática do que é ético e justo perfazem parte essencial da “Roda da Paz” ou da Ecologia Profunda, e certamente estão na força centrípeta maior do propósito da Justiça, parte intrínseca à sua infinita lemniscata. Não se pode viver nem conviver bem (com a sociedade ou com o meio ambiente) sem terem-se como norte e orientação os princípios baseados na justiça, na equanimidade, na superação de conflitos éticos por meio dos veículos da reflexão, na criativa busca por estratégias que resolvam antigos e novos enigmas deste grande mistério que são a vida, a sociedade e sua comunicação tão fértil e complexa, dependentes de um meio ambiente saudável e harmônico.
A ética e a justiça, portanto, embora superficialmente aparentem ser relativísticas (parecem soar como meros “parâmetros”), sujeitas à mudança com o tempo e o espaço, erguem-se, em um nível profundo e até metafísico, sobre raízes solidamente plantadas no terreno “do indispensável e do absoluto” (para lembrar o pensador dinamarquês Kierkegaard). Em outras palavras, ética e justiça são princípios universais, muitas vezes, lamentavelmente, nublados por interesses e práticas técnico-tecnológicas alienantes e fragmentários, que obedecem a “lógicas” nem sempre afins ao bem-estar dos seres humanos e da Terra, como a “lógica” do mercado nas indústrias da “saúde” e da “educação”, para dar apenas dois exemplos.
Para haver a harmonia que a “Nova Ciência” (guiada pela Ecologia Profunda) requer, assim sendo, é fundamental que todos se tornem cada vez mais conscientes da necessidade da onipresença da ética e da justiça. Que mais uma vez se recorra à transdisciplinaridade, em sua metodologia pedagógica de operar com rigor, abertura e tolerância/aceitação, ciosa da necessidade de lidar com a complexidade dinâmica de um mundo que deve realmente começar a levar em consideração a transcendência (não a subjugação) das dialéticas e das lutas, com o “terceiro incluído” e a constatação irrevogável da existência de diferentes níveis de consciência, o que vem a retornar mais uma vez sobre o princípio de Ecologia Profunda.
Nessa equação, e talvez somente nela mesma, a ética e a justiça poderão trazer à luz o que sua raiz indispensável e absoluta arraiga em nossa helicoidal sequência cósmica de aminoácidos, que biofísicos chamaram poeticamente de “DNA”: a busca por um planeta sustentável e harmônico, cuja ecologia integrativa (e profunda) não seja encarada pelos seres humanos nem como escrava, nem como algoz; uma epistemologia e uma pedagogia — um paradigma, enfim — que repousem serenamente na emanação dos princípios ecológicos profundos, que trazem consigo a presença do respeito, da conscientização, da ética, da justiça — e da paz.
Alexandre Chini é juiz de Direito do Tribunal de Justiça do Estado do Rio de Janeiro