* Juíza Andréa Pachá
Quando o Estado não garante o mínimo de mobilidade urbana, moradia, direito às manifestações do pensamento, acesso à educação, cultura e saúde e, quando, nas ocasiões em que se faz presente, é para controlar, vigiar e punir, estabelece-se um cenário de repressão permanente que transborda para as relações pessoais. Nesse perverso espelho de repetição de um modelo que utiliza o medo e a desconfiança como elementos fundamentais, aprofunda-se a violência no grupo social.
Acresça-se a esse cenário de tensão cotidiana o utilitarismo da sociedade de consumo e do espetáculo, que impõe a satisfação imediata de todos os prazeres, a negação de qualquer limite ou contrariedade e a obrigação da felicidade permanente. Chegamos assim nos octógonos contemporâneos das cidades, aos dias de fúria permanentes, nos quais pouco se dialoga, muito se exige e tudo se impõe pela força.
A repetição e a banalização da insensatez surpreendem. São agressões em salas de aula, brigas com morte por ciúme, festas de formatura do ensino médio com lutas de anões, arremesso de vasos sanitários em campos de futebol com morte da vítima, e linchamentos. Nem mesmo o Theatro Municipal, ambiente de arte, cultura e sensibilidade, tem sido poupado da barbárie: uma mulher, advertida por falar no celular durante o espetáculo, reage e acaba agredida. Sem falar do horror do espancamento até a morte de uma mulher, no litoral paulista, vítima da disseminação de boatos de bruxaria nas redes sociais.
Nos discursos reativos, um desejo expressa a expectativa: todos querem justiça! Parece, no entanto, que a palavra justiça nunca esteve tão descolada do seu significado.
Na violência pouco se aprende e nada se ensina. A banalização dos desrespeitos cotidianos tem levado a sociedade a terceirizar para o Estado a solução dos conflitos que deveriam, inicialmente, ser enfrentados pelos próprios cidadãos.
Imaginar que se pode fazer tudo o que se tem vontade e reagir do jeito que se entender conveniente é negar o princípio fundamental da vida em grupo: o respeito aos limites das convivências pessoal e social. Retomar a responsabilidade pelo ensinamento dos valores civilizatórios de limite e tolerância é uma função essencial que não deveria ser assumida exclusivamente pelo poder estatal.
Há formas mais inteligentes e civilizadas de solucionar conflitos, com mais diálogos, mais mediações e menos repressão. São inúmeros e crescentes os direitos que emergem todos os dias, e pactuar tantos direitos é tarefa que exige compreensão profunda de que o que nos une, como seres humanos, é maior do que o que nos afasta. Construir redes de afeto, educação, equilíbrio e respeito é tarefa de todos.
O Judiciário, além do papel afirmativo na garantia da efetividade dos direitos, tem, nesse momento, a função pedagógica de impedir que a força seja eleita como única ferramenta na solução dos litígios, propiciando o reencontro da palavra justiça com o seu significado ético, humano e transcendental.
Fonte: O Globo