Em artigo publicado nesta quarta-feira (3) nos sites dos jornais “O Globo” e “O Estado de S. Paulo”, o desembargador do TJ-RJ (Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro) André Andrade tratou do posicionamento das patrocinadoras do Minas Tênis Clube no caso de homofobia nas redes sociais que resultou na demissão do jogador de vôlei Maurício Souza. Em “Marcas em tempos de cólera”, o magistrado divide a autoria com Kone Prieto, professora de Direito da UFRJ (Universidade Federal do Rio de Janeiro).
Os autores discorrem sobre a postura das empresas para preservar a reputação de suas marcas, ocorridas segundo a Lei da Propriedade Intelectual. Também relembram que o STF (Supremo Tribunal Federal), em 2019, equiparou práticas homotransfóbicas ao racismo. “A forma usada pelas empresas para a preservação de seus valores não afronta a liberdade de expressão”, afirmam em trecho do artigo.
Veja abaixo o artigo na íntegra.
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Marcas em tempos de cólera
Por André Gustavo Corrêa de Andrade* e Kone Prieto Furtunato Cesário**
O Minas Tênis Clube informou na semana passada pelas redes sociais que o atleta Maurício Souza não era mais jogador do seu time de vôlei. Em seguida, foi a vez de o técnico da seleção masculina de vôlei, Renan Dal Zotto, fechar-lhe as portas da seleção. O motivo: manifestações consideradas homofóbicas do atleta em suas redes sociais.
São raros os casos de afastamentos e punições no campo do direito desportivo por conduta discriminatória de atletas contra algum indivíduo ou todo um grupo. O que não é raro são manifestações públicas de atletas, em redes sociais, consideradas discriminatórias a minorias.
A primeira decisão do Minas Tênis Clube tinha sido considerada tímida por apenas afastar o jogador, uma atitude de praxe nas estratégias de comunicação, do tipo “vamos deixar a poeira baixar”. Entretanto, patrocinadoras da equipe, como a Fiat e a Gerdau, não se contentaram, sobretudo, ao constatarem que o atleta usava de subterfúgios para não se retratar de forma satisfatória e sincera. Sendo assim, pressionaram o clube por uma medida mais enérgica, levando-o a rescindir o contrato com Maurício.
O que chama a atenção, nesse caso específico, foi justamente a postura das empresas patrocinadoras, que atuaram em prol da preservação da reputação de suas marcas, frente à conduta do atleta e do clube. É notável a reação da Fiat e da Gerdau, duas companhias que não são necessariamente conhecidas por campanhas publicitárias de ativismo social, em que pese, por volta do ano 2000, a Fiat do Brasil ter feito uma campanha voltada à naturalização das relações homoafetivas.
A rescisão do contrato do atleta gerou, como seria de esperar em nossa sociedade polarizada, reações favoráveis e desfavoráveis nas redes sociais e nos meios de comunicação. Muitos argumentaram que o atleta simplesmente emitiu uma opinião pessoal e que puni-lo por isso seria violar a sua liberdade de expressão. Será?
Vários relatórios mostram que o Brasil é um dos países em que há mais agressões e mortes violentas de integrantes da comunidade LGBTQIA+. A motivação desses crimes é só o fato de as vítimas serem identificadas como parte dessa comunidade.
Em 2019, o STF equiparou as práticas homotransfóbicas ao racismo. Induzir ou incitar à discriminação ou ao preconceito homofóbico ou transfóbico passou a ser considerado crime, nos termos da Lei nº 7.716/89 (art. 20). Fora, portanto, do âmbito de proteção do princípio da liberdade de expressão.
Qualquer discurso ou comentário homofóbico, ainda que não venha a ser considerado crime — por lhe faltar a finalidade, prevista na lei, de induzir ou incitar à discriminação e ao preconceito —, constitui, ainda assim, um reforço do preconceito sistêmico existente na sociedade contra gays e trans.
Palavras têm poder. E, frequentemente, têm consequências positivas ou negativas. Por isso, manifestações e comentários homofóbicos ou transfóbicos não podem ser considerados meras opiniões pessoais.
Diante desse quadro, o que poderiam as patrocinadoras fazer para preservar seus valores e suas marcas?
Elas poderiam e fizeram aquilo que a Lei da Propriedade Industrial lhes dá o direito, que é zelar pela integridade material ou reputação das marcas de que são titulares (art. 130, III, da Lei 9279/96). E de um modo mais eficiente do que a judicialização, ou seja, pressionando a entidade esportiva com a qual mantêm contratos de patrocínio a tomar uma providência efetiva contra uma manifestação que colide com valores que busca defender.
Especialmente no caso de modalidades como o vôlei, em que ainda são raros os contratos de trabalho de atleta profissional, o caso ganha ainda mais relevância. A maior parte da remuneração vem de contratos de cessão de uso de imagem com os respectivos clubes e, muitas vezes, com o seu patrocinador, criando relações contratuais de direito privado, ideal para que os patrocinados (clube e atleta) sejam efetivamente cobrados a representarem seus valores relativos à marca.
Por isso, a forma usada pelas empresas para a preservação de seus valores não afronta a liberdade de expressão. É justo que elas usem de todos os meios que a liberdade contratual lhes garante, como cobrar por aquilo que pagaram com base numa dada expectativa, no caso a imagem do clube e dos atletas, para que a sociedade se apoie em valores mais justos.
A função social das empresas constitui preceito constitucional, que pode ser exercitada de várias formas, entre as quais por meio de ações que busquem reforçar valores inclusivos de minorias sociais.
*Desembargador do Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro, professor na pós-graduação da Universidade Estácio de Sá-RJ e autor de “Liberdade de expressão em tempos de cólera”
**Professora da Faculdade Nacional de Direito da Universidade Federal do Rio de Janeiro e da pós-graduação