O jornal “Monitor Mercantil” publicou, nesta terça-feira (1º), o artigo “A honra como licença para matar”, de autoria do desembargador Wagner Cinelli, do Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro (TJ-RJ). No texto, o magistrado trata do feminicídio. Na segunda-feira (31), o curta-metragem de animação “Sobre Ela”, que aborda a violência contra a mulher e é dirigido pelo desembargador, foi premiado no Hollywood North Film Awards, de Toronto (Canadá).
O filme recebeu dois prêmios: Melhor Roteiro, feito pelo desembargador Wagner Cinelli, e Melhores Efeitos Visuais, realizados pelo diretor de artes Lucas Chewie. “Sobre Ela” (“About Her”, na tradução literal em inglês) mostra uma história de violência doméstica contra a mulher praticada pelo companheiro.
O curta-metragem está na seleção oficial de 30 festivais e já recebeu sete prêmios. Como há festivais que exigem ineditismo, o filme ainda não está disponível em canais públicos, mas pode ser assistido em festivais como o Philadelphia Latino Film Festival (EUA), o Florida Animation Festival (EUA), o Queens World Film Festival (EUA) e o Festival Animarte (Brasil).
Dedicado aos filmes de animação, o Animarte acontece até o dia 13 de junho. O acesso aos curtas é gratuito. Clique aqui para se cadastrar e assistir.
Confira abaixo a íntegra do artigo do desembargador, publicado pelo “Monitor Mercantil”:
A honra como licença para matar
Marido mata a mulher, esquarteja o corpo e despacha o cadáver em uma mala. Não é ficção. Aconteceu em São Paulo, no ano de 1928. O assassino Giuseppe Pistone e a vítima Maria Féa se conheceram no navio que os trouxe da Itália para a Argentina, onde se casaram, mudando-se depois para o Brasil.
O criminoso confessou que tiveram uma briga e, sufocando-a com um travesseiro, tirou-lhe a vida. Contou ainda que beijou e acariciou a mulher morta, passando aquela noite deitado ao lado dela. No dia seguinte, despedaçou o corpo e o pôs em uma mala, ali acondicionando roupas e uma das navalhas usadas.
A bagagem seria embarcada no vapor Massilia, que zarparia do Porto de Santos com destino a Bordeaux, na França. Entretanto, um cabo rompeu quando do embarque de um grupo de malas, dentre elas a que continha o cadáver de Maria, chamando a atenção de um dos marinheiros, que percebeu o estranho odor dela proveniente, o que acabou trazendo a polícia à cena, que chegou ao marido assassino.
A sociedade da época ficou ainda mais chocada quando a autópsia revelou que a vítima estava grávida de 6 meses. O episódio ficou conhecido como o Crime da Mala.
Giuseppe disse que Maria teria lhe traído, porém ninguém acreditou nisso. A toda evidência, uma mentira apresentada como desculpa. Mas ele não foi o primeiro nem o último acusado de feminicídio a alegar questão de honra. Aproximadamente meio século depois, Doca Street, que assassinou a namorada Ângela Diniz com 4 tiros, arguiu ter agido em legítima defesa da honra.
Mas seria a defesa da honra um tipo de legítima defesa? Para melhor entender essa questão, vejamos a definição legal que está no artigo 25 do Código Penal: “Entende-se em legítima defesa quem, usando moderadamente dos meios necessários, repele injusta agressão, atual ou iminente, a direito seu ou de outrem.”
A legítima defesa é uma excludente de ilicitude, e a mais conhecida do público é a legítima defesa própria, que podemos chamar de matar para não morrer. Quando exercida para proteger outra pessoa, denomina-se legítima defesa de terceiro. Há outras modalidades e nomenclaturas, porém nenhuma delas incorpora a referida legítima defesa da honra. Por isso, esse termo pode até soar técnico-jurídico, mas não é. Basta ler o dispositivo legal acima transcrito para se concluir que ali não cabe essa “defesa da honra”.
Tomemos, por exemplo, um feminicídio praticado por suposta traição da mulher. Que “uso moderado dos meios necessários” seria esse? Qual seria a injusta agressão repelida? Qual seria o direito protegido com essa atitude? Há legítima defesa com uso de violência para aplacar abalo emocional? Cada uma dessas indagações expõe a fragilidade da construção pseudojurídica da tese da legítima defesa da honra.
Não bastassem esses argumentos a respeito do tema, o Código Penal expressamente dispõe que a emoção ou a paixão não excluem a imputabilidade penal (art. 28, I).
Mesmo não tendo a legítima defesa da honra previsão legal, sua utilização talvez pudesse se dar por outro fundamento. Crimes intencionais contra a vida são da competência do Tribunal do Júri. O juiz togado preside a sessão de julgamento; no entanto, quem decide se o réu é inocente ou culpado são os jurados. Como não precisam ter conhecimentos jurídicos, são admitidos argumentos não jurídicos, o que tem base no princípio da plenitude da defesa. Daí o uso de discursos morais no júri. Estaria aí a possibilidade de aplicação da tese da legítima defesa da honra.
Contudo, o Supremo Tribunal Federal, em março de 2021, mês da mulher, em Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental proposta pelo Partido Democrático Trabalhista (ADPF 779), com relatoria do ministro Dias Toffoli, pôs uma pá de cal sobre o assunto ao decidir, por unanimidade, que a alegação dessa “legítima defesa da honra” fere a Carta Magna por contrariar princípios constitucionais como dignidade da pessoa humana, proteção à vida e igualdade de gênero. Por isso, advogados estão doravante impedidos de sustentar, direta ou indiretamente, essa tese.
Esse julgamento do Supremo é um marco importante, pois rompe com valores da cultura machista e reafirma a necessidade de se coibir a violência de gênero. De fato, não tem cabimento se cogitar de a honra de alguém estar centrada no comportamento de terceira pessoa. Tampouco se pode admitir a existência de um direito subjetivo de agredir ou matar. Além disso, o objetivo da tese da legítima defesa da honra ficou bem claro: proteger homens que praticavam violência contra mulheres.
Homens abusadores agora terão que buscar outras escusas para seus atos de covardia. O ideal seria que controlassem seus impulsos, rompendo assim o ciclo de violência do qual fazem parte. Afinal, com o fim da tese da legítima defesa da honra, sepulta-se uma concepção equivocada e consagra-se, ainda que tardiamente, que não há honra em se tornar um assassino.
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