*O Globo
Em nenhum outro momento da História o Judiciário foi tão demandado e esteve em posição tão central da vida brasileira. É isso que dizem os organizadores do livro “O Judiciário do nosso tempo”, publicação da Globo Livros que será lançada nesta terça-feira (26), às 19h, na Livraria da Travessa do Shopping Leblon, no Rio. Uma das autoras é a ministra do Supremo Tribunal Federal (STF) Cármen Lúcia que, em entrevista, define o ponto-chave do desafio brasileiro: “Somos uma democracia em que há antidemocratas ainda”.
O desafio dos organizadores da obra, Maria Tereza Sadek, Pierpaolo Bottini, Raquel Khichfy e Sérgio Renault, foi mostrar para o público não especializado as muitas questões em torno do Judiciário. De ministros do Supremo a jornalistas, os autores passam por temas que vão do funcionamento da Justiça aos erros do sistema prisional. Do Ministério Público ao papel da Defensoria Pública. Dos julgamentos históricos do STF à necessidade de novos avanços. O resultado é uma obra indispensável para quem quer entender o Brasil de hoje. Não por acaso, a última palavra do livro é “democracia”.
Como a senhora avalia a atual crise entre os poderes?
Esta matéria está sub judice e eu não me pronuncio fora dos autos. Especialmente em matéria que está sob relatoria de uma colega. Vamos aguardar os julgamentos.
Os organizadores do livro “O Judiciário do nosso tempo” dizem logo na abertura que “não há registro em nossa história de época em que o sistema de Justiça tivesse sido tão demandado”. É um protagonismo exagerado?
A cidadania mudou. Eu fui estudante de direito na década de 1970. Os professores diziam “melhor um mau acordo do que uma boa demanda”. Hoje o cidadão sabe do seu direito e passou a reivindicá-lo. Porque não se reivindica direito desconhecido. Houve um crescimento da própria cidadania, com a Constituição de 1988. Ele quer um bom acordo ou uma boa demanda. Ele já não quer um mau acordo, abrindo mão daquilo que frustra a sua ideia de Justiça. Isso leva a uma procura maior pelo Poder Judiciário, o que é muito positivo. Imagina uma sociedade na qual nós conquistamos direito, formalizamos direito, mas o titular do direito, que é o cidadão, não se dá conta dele. Direito não cai do céu, não sai do inferno. Direitos, deveres e responsabilidades são conquistas civilizatórias.
Do seu artigo com a professora Maria Tereza Sadek, quero destacar duas frases: “O Brasil é uma República de poucos repúblicos” e “não temos uma República amadurecida democraticamente”. Corremos o risco de perder o que conquistamos?
Somos uma democracia em que há antidemocratas ainda. Então é preciso que a gente construa socialmente a democracia e a República mais amplas. Isso é que nos faz mais republicanos. Repúblicos de uma República verdadeira. Tudo, no caso brasileiro, é muito mais dificultoso, porque nós temos uma história de colonização extremamente impositiva e autoritária. Estamos no ano do bicentenário da Independência, e os preconceitos e as atitudes antidemocráticas de hoje são repetições históricas tristes do que ainda não conseguimos superar. Precisamos falar dos negros, desde a escravidão, desde as condições precárias de trabalho. Nós mulheres falamos disso de cátedra. Dona Hipólita Jacinta (Teixeira de Mello) foi silenciada, emudecida historicamente, sendo que ela foi parte da Conjuração ou Inconfidência Mineira. Ela era uma das protagonistas. Fora nós de Minas — você de Caratinga, eu de Espinosa — os brasileiros nunca ouviram falar de Dona Hipólita. A Dona Bárbara de Alencar, do Crato, foi a primeira presa política brasileira mulher e morreu perseguida pelas suas ideias e pelas suas ações políticas. Democracia se ensina, democracia se aprende, democracia é um processo educacional da Humanidade.
Um dos pontos do livro é que a magistratura nasceu na monarquia, por isso nasceu como casta. Fechada e hermética. Torná-la mais compreensível é parte da democratização da Justiça?
Com certeza. Há os protocolos, os ritos e os símbolos que fazem parte de uma vida em sociedade. Há uma terminologia própria, necessária. Quando a gente fala que dá provimento, que julga procedente, todos os participantes de um processo sabem o que nós estamos falando. Mas um cidadão leigo pode não saber e isso precisa ser devidamente decodificado. A tentativa, cada vez maior, é de explicar, de ser um poder democrático. A Constituição é a lei do cidadão, e a lei é viva, porque a própria palavra vai mudando o seu significado. É preciso democratizar, mantendo-se os símbolos. A democracia não abre mão da autoridade, mas a autoridade tem de ser exercida democraticamente, não autoritariamente. Quando a gente proclama o resultado, diz que “acolhe os embargos com efeitos infringentes para prover o agravo regimental no recurso especial”, o cidadão não entende. Uma vez recebi uma ligação, às 2h da manhã, de um cidadão do interior, perguntando: “Ministra eu só quero saber, eu ganhei ou perdi?”. É preciso manter o protocolo, mas deixar claro o resultado.
Quero destacar outra frase do livro. “O segredo é incompatível com a República”. Como falar do princípio da publicidade nesta era dos segredos centenários?
Hoje nós temos norma expressa na Constituição, Art. 37, pela primeira vez no Brasil. A Administração Pública, direta ou indireta, de qualquer dos poderes, obedecerá aos princípios da legalidade, da impessoalidade, da publicidade. É dever constitucional de todos nós. Há exceções, quando o segredo protege o menor, por exemplo. Mas a regra expressa é que o segredo tem que ser motivado. Como você se informa se não é dado a público? Como o cidadão exerce o direito fundamental previsto no artigo 5º, um dos direitos fundamentais, o direito de informar e de ser informado? Por isso a ênfase na liberdade da imprensa. Sem a imprensa nós não ficamos sabendo.
No livro, o ex-procurador-geral da República Antônio Fernando de Souza fala do caso do Mensalão. Ele escreveu que “ninguém deve se acostumar com os atos de corrupção como se fosse algo dado pela natureza”. Na Lava-Jato há um revisionismo recente a partir da ideia de que o julgamento não foi imparcial. É um retrocesso?
O direito de ser julgado de maneira imparcial é direito fundamental. E vem de muito tempo. Antígona queria que seus dois irmãos, Etéocles e Polinices, fossem julgados da mesma forma. E é o que diz a Creonte. A corrupção é o que Ulysses chamou de “a doença da República”. Então a corrupção é inaceitável. É crime. Não está havendo um retrocesso. Mas as investigações precisam ser feitas nos termos da lei, e não são investigações fáceis mesmo. Os corruptos de forma geral não deixam provas tão fáceis, como é caso em uma prisão em flagrante.
Um dos artigos é sobre o sistema prisional, de Pierpaolo Bottini e Alberto Torón. Eles dizem que há 682.182 prisioneiros. Há prisão em excesso?
Primeiro, há um número muito grande de prisões. Segundo, se prende mal. Há medidas no direito penal brasileiro que poderiam ser utilizadas para evitar prisão. Nossa população carcerária tem inúmeras pessoas que praticaram crimes menores e que saem piores do que entraram, porque tiveram que aguentar as condições precaríssimas, cruéis muitas vezes, das prisões. Os juízes precisam cada vez mais avaliar que nós temos uma condição prisional de pior qualidade, desumana. Eu trabalho com essa área desde a década de 1980. Há bons exemplos no sistema prisional, como as APACs de Minas, mas são poucos. Prende-se muito e prende-se mal no Brasil. Quem é pego com maconha, cocaína que seja, é preso em flagrante, mas crimes mais graves, homicídios, feminicídio dependem do inquérito. Grande parte dos inquéritos sequer chega ao final antes da prescrição. Esse é um problema que a Humanidade precisa vencer. A gente não fala hoje em prisão nem de passarinho, e vai prender ser humano? A não ser em casos especialíssimos, porque é contra a ideia de humanidade, é contra a ideia de liberdade. O Direito precisa superar essa fase. O sistema prisional brasileiro é horrível e em muitos casos foi o Estado que falhou.
Vários articulistas do livro falaram do Conselho Nacional da Justiça. Qual o papel do CNJ?
O Conselho Nacional de Justiça foi criado em 2004 por emenda constitucional e o ministro Nelson Jobim foi o primeiro presidente. Houve reações, na época, mas um poder sem controle é um poder sem limites e isso é absolutamente incompatível com a democracia.
O ministro Luís Roberto Barroso fez uma lista dos julgamentos históricos. O das cotas raciais, da homofobia como crime, da proteção dos indígenas e os da liberdade de expressão. Poderia falar desses avanços?
Esses julgamentos tidos como históricos garantiram direitos, para chegar ao amadurecimento democrático social e institucional. Vou tomar o exemplo das cotas. Quem não se abria para que toda a sociedade cumprisse o que está no artigo 1º da Constituição, o pluralismo, precisou se abrir. O plural faz parte do ser humano. Para usar expressão do Norberto Bobbio, o jogo democrático é isso. O diferente não é o inimigo, o diferente é alguém que pensa outra coisa, e pode me convencer. Só o ditador, só o tirano quer pegar a bola do meio do campo, botar debaixo do braço e acabar o jogo. Só o tirano mata quem é diferente. O democrata quer até ganhar o jogo, mas com as regras do jogo. Então esse julgamento histórico faz com que haja a presença daquele que hoje é minoria, que não ganhou ainda no jogo, mas quer também fazer valer seus pontos de vista e nos convencer. A democracia é assim.