*Folha de S.Paulo
Suspensas em grande parte do Brasil desde o início da pandemia, em março do ano passado, as audiências de custódia vêm sendo retomadas de maneira gradual e intermitente em meio a um intenso debate sobre sua virtualização por meio do uso de videoconferência.
Com a paralisação e a virtualização, o número desse tipo de audiência despencou de 222 mil em 2019 para 66 mil em 2020. Até junho deste ano, houve apenas 19 mil, segundo dados do Conselho Nacional de Justiça (CNJ).
Segundo relatório da Rede Justiça Criminal, lançado na tarde desta quinta-feira (11), o processo de tornar essas audiências remotas significa, na prática, seu desmonte.
“Durante a pandemia, houve várias iniciativas do Judiciário e do Legislativo para que as audiências de custódia fossem flexibilizadas e realizadas por videoconferência”, diz Janine Salles de Carvalho, secretária-executiva da Rede Justiça Criminal.
“Entramos numa batalha para que esse instituto não fosse virtualizado porque isso compromete a sua finalidade. Não dá para detectar tortura por meio de uma tela.”
Criada em 2015 para assegurar direitos fundamentais de pessoas presas, a audiência de custódia consiste na apresentação perante o juiz, em até 24 horas, de quem foi preso em flagrante ou por mandado de prisão.
Acompanhada de advogado ou defensor, a pessoa presa é ouvida pelo juiz, que pode manter sua prisão, convertida em preventiva, ou substituí-la por medidas cautelares, ou libertá-la, além de verificar se existem sinais ou relatos de tortura ou de maus-tratos.
Sua implementação responde a questões como o encarceramento em massa no Brasil, que tem a terceira maior população prisional do planeta, a superlotação do sistema prisional e o alto percentual de pessoas presas provisoriamente, sem uma condenação.
As audiências regulam a porta de entrada do sistema carcerário e são apontadas como principal fator de contribuição para a queda de 11% no número de presos provisórios, que representavam 37% da população carcerária em 2015 e 30% em 2019.
A redução evitou 277 mil prisões desnecessárias e uma economia de pelo menos R$ 13,8 bilhões aos cofres públicos pela eliminação da necessidade de novas vagas, sem considerar custeio.
As denúncias sobre maus-tratos praticados por policiais no momento da prisão mais do que dobraram desde que as audiências de custódia foram instituídas, passando de 2,4% dos casos em 2015 para 6,2% em 2019.
Estudos indicam, no entanto, que há subnotificação de violências sofridas no ato das prisões. Ocorrências de 13 cidades monitoradas sob supervisão do Instituto de Defesa do Direito de Defesa (IDDD) apontaram que quase 24% das pessoas presas afirmaram ter sofrido violência por parte de agentes policiais.
Levantamento feito pela Defensoria Pública do Rio de Janeiro com base em dados do CNJ apontou para o impacto da suspensão das audiências presenciais.
De março a agosto de 2020, apenas 0,83% dos autos indicavam a ocorrência de tortura, contra 38,3% de denúncias de maus-tratos feitas durante audiências de custódia presenciais entre setembro de 2017 e de 2019.
Foi o caso de Marta (nome fictício), apresentada a um juiz poucos dias depois da retomada das audiências de custódia presenciais no Rio, em agosto de 2020. Ela inicialmente negou ter sofrido maus-tratos, ainda que exibisse uma postura acuada e um ferimento na cabeça.
Desconfiado, o juiz pediu que todos saíssem da sala, menos a promotora e a defensora. Explicou a Marta que o sigilo das informações seria garantido. Mais segura, ela relatou, entre lágrimas, que oito policiais haviam invadido e revirado sua casa, agredido e ameaçado em busca de drogas.
“Esse caso é bem ilustrativo da importância de ter audiências de custódia presenciais, porque o juiz pode transmitir a ela uma segurança que é impossível de ser passada por uma tela”, avalia Mariana Castro, coordenadora do núcleo de audiências de custódia da Defensoria Pública do Rio de Janeiro.
“Sozinha numa sala, sem saber se há alguém escutando atrás da porta ou de uma parede fina, e se sofrerá alguma retaliação assim que a câmera for desligada, a denúncia fica mais difícil.”
Segundo a defensora, é comum que vítimas de maus-tratos se apresentem intimidadas, assustadas, traumatizadas ou até mesmo envergonhadas. “É imprescindível que o magistrado tenha contato direto com a pessoa porque há nuances e sutilezas, de postura, de tom de voz, que não podem ser percebidos adequadamente através de telas.”
O uso de videoconferência para audiências de custódia durante a pandemia de Covid chegou a ser vetado em maio de 2020 pelo então presidente do CNJ, ministro Dias Toffoli. Ele argumentou que instrumentos internacionais —o Pacto Internacional sobre Direitos Civis e Políticos e a Convenção Americana de Direitos Humanos— ressaltam o direito de presença.
Em setembro de 2020, o ministro Luiz Fux, já presidente do CNJ, mudou o entendimento e editou resolução que regulamenta a videoconferência durante a pandemia, com o uso de mais de uma câmera ou de câmera 360 graus dentro da sala, além de uma câmera externa à sala.
No Legislativo, a restrição constava do chamado pacote anticrime (lei 13.964/2019), mas o parágrafo que proibia o uso de videoconferência em audiências de custódia foi vetado pelo presidente Jair Bolsonaro (sem partido).
Em abril de 2021, o Congresso derrubou o veto do presidente, mas, em junho, decisão liminar do ministro Nunes Marques em ação da Associação dos Magistrados Brasileiros (AMB) autorizou o uso de videoconferências durante a pandemia.
Seis dos 11 ministros confirmaram a decisão, mas o julgamento foi interrompido pelo pedido de vistas do ministro Gilmar Mendes.
Levantamento da AMB de 2018 apontou que 50,3% dos magistrados que atuam na primeira instância são favoráveis às audiências de custódia. Nos tribunais de segunda instância, o índice sobe para 80,9%; nas cortes superiores, vai a 88,2%.
Em nota, a presidente da AMB, Renata Gil, afirma que a realização de audiências de custódia por videoconferência reduz custos, ao diminuir deslocamentos e emprego de forças policiais, e acelera a tramitação dos processos. Ela também diz que o recurso evita a perpetuação de abusos e permite aos magistrados identificar eventuais sinais de maus-tratos.