A efetivação do direito à audiência de custódia é sempre um motivo para se comemorar. Nesse sentido, é de se parabenizar o Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro pera regulamentação e criação de condições para a implementação do direito do preso a uma audiência de custodia.
Recentemente, aliás, foi jugada pelo Supremo Tribunal Federal a Acão Direta de Inconstitucionalidade (ADI) 5.240/SP, movida pela Associação dos Delegados de Policia do Brasil (Adepol-Brasil), contra Provimento Conjunto 3, de 22 de janeiro de 2015, da Presidência e da Corregedoria-Geral da Justiça do Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo, sendo reconhecida a validade da audiência de custódia.
Do ponto de vista terminológico, o ministro Luiz Fux preferiu usar a denominação “audiência de apresentação”. O termo pode parecer mais apropriado, no sentido de não indicar que a regra será a conversão da prisão em flagrante delito em “custódia”, isto é, em prisão. A liberdade, sempre, deve ser a regra, a prisão, a exceção.
Todavia, não me parece errado continuar a utilizar a expressão “audiência de custodia”, que já se pode considerar consolidada pela doutrina. Isso porque, uma da acepções da palavra custódia é exatamente, a de “proteção, guarda”;[1] ou ser “conservado sob segurança e vigilância, como medida de preservação, prevenção ou proteção”. Na referida audiência, o juiz zela, cuida, protege a liberdade do indivíduo.
Voltando à Resolução TJ/OE/RJ 29/15, além dos elogios pela iniciativa, é preciso, por outro lado, destacar três aspectos preocupantes: (i) ausência de um prazo definido para a apresentação do preso; (ii) a possibilidade de dispensa da audiência em razão das condições pessoais do preso, e; (iii) facultatividade da presença do Ministério Público.
O primeiro ponto criticável, é que o artigo 2º, caput, limita-se a estabelecer que o preso será apresentado “sem demora”, ao juiz. De todos os tribunais que disciplinaram em atos normativos internos a Audiência de Custódia, o Rio de Janeiro foi o único que não adotou um prazo cronologicamente definido, limitando-se a repetir os termos do artigo 7.5 da CADH. Toda e qualquer prisão cautelar deve estar sujeita ao princípio da legalidade, e a utilização de uma expressão sem contornos precisos aumenta a discricionariedade, o que se mostra uma opção criticável. Comparativamente, todos os demais tribunais que disciplinaram a audiência de custódia adotaram o prazo de 24 horas, que é, também, o prazo previsto no PLS 554/2011. A única exceção foi o TJ do Maranhão, que estabelece o prazo de 48 horas.
Tomando por base a jurisprudência da Corte Europeia de Direitos Humanos, Miguel Ángel Encimar del Pozo afirma que é possível estabelecer alguns critérios: (i) a Corte geralmente considera violada a Convenção quando o prazo da detenção excede o legalmente previsto no direito interno; (ii) a Corte costuma julgar com severidade a detenção sem apresentação perante a autoridade judicial quando se prolonga por período de 4 dias ou mais; (iii) a Corte não costuma aceitar como justificação para a ampliação ou prolongamento do prazo da detenção o fato de se tratar de luta contra o terrorismo ou o fato de as investigações policiais ainda não terem terminado.[2]
Outro ponto criticável é a possibilidade de não realização da audiência, já que por decisão judicial fundamentada poderá ser “dispensada a apresentação do preso quando forem reconhecidas circunstâncias pessoais que a inviabilizem” (artigo 2, parágrafo único). A audiência é obrigatória segundo o CIDH. No caso, condições pessoais do preso podem justificar a demora maior na realização (por exemplo: se estiver hospitalizado), mas não a sua não realização. Não poderão, contudo, caracterizar motivos para não apresentação, por exemplo, a gravidade do crime ou mesmo a alegada periculosidade do agente.
Por fim, mas não menos relevante, é criticável a previsão de facultatividade da presença do Ministério Público e do defensor na audiência de custódia. O artigo 6º, caput, da Resolução dispõe que, na audiência, depois de ouvido o preso, manifestar-se-ão, “em seguida, o MP e defesa, se presentes ao ato”. Ora uma vez mais invocando o posicionamento da CADH, a presença do Ministério Púbico e do defensor é obrigatória em tal ato.
A presença do defensor é fundamental para fazer respeitar os direitos do preso, por exemplo, o de permanecer calado, bem como para assegurar a legalidade na realização da própria audiência. Além disso, possibilitará que argumentos estritamente jurídicos sobre a legalidade da prisão e mesmo sobre a necessidade e adequação de sua manutenção, substituição e revogação, possam ser expostos em paridade de armas com o Ministério Público.
Ao ouvir o defensor e o acusado, o juiz terá oportunidade de examinar todos os fatos que militam a favor de sua prisão — e que foram considerados pela autoridade policial ao prendê-lo em flagrante delito — bem como considerar os argumentos contrários à prisão preventiva e decidir sobre a sua manutenção, substituição por medida alternativa à prisão ou mesmo a sua simples revogação, tendo uma visão mais completa da situação.
Isso porque o juízo a ser realizado na chamada audiência de custódia é complexo ou bifronte: não se destina apenas a controlar a legalidade do ato já realizado, mas também a valorar a necessidade e adequação da prisão cautelar, para o futuro. Há uma atividade retrospectiva, voltada para o passado, com vista a analisar a legalidade da prisão em flagrante, e outra, prospectiva, projetada para o futuro, com o escopo de apreciar a necessidade e adequação da manutenção da prisão, ou de sua substituição por medida alternativa à prisão ou, até mesmo, a simples revogação sem imposição de medida cautelar.
Por outro lado, a presença do Ministério Público, tratando-se de ato jurisdicional, ainda que praticado na fase de investigação, também será obrigatória. Mais do que isso, com a presença do Promotor de Justiça, será possível efetivar a regra do artigo 282, parágrafo 2º, do Código de Processo Penal, que não permite que o juiz decrete, ex officio, medidas cautelares na fase de investigação. Logo, se o Ministério Público não estiver presente na audiência de custódia, e não houver requerimento de que a prisão em flagrante seja “convertida” em alguma medida cautelar, no termos do artigo 310, caput, do mesmo código, o juiz não poderá decretar a prisão preventiva ou outra medida cautelar alternativa à prisão, por falta de requerimento do Ministério Público. A audiência de custódia converte-se em ato essencial para completar o ato complexo e de duração continuada que se transformou a prisão em flagrante. Sem a presença de defensor e do Ministério Público, a prisão em flagrante não poderá ser convertida em qualquer medida, devendo ser considerada ilegal e relaxada a prisão, como previsto no artigo 5.
As críticas, contudo, não tiram o mérito da iniciativa. No campo de direitos e liberdades, cada conquista deve ser comemorada, valendo a frase de Voltaire, de que o ótimo é inimigo do bom!
RESOLUÇÃO TJ/OE/RJ 29/2015
Disciplina a Audiência de Custódia no âmbito do TJ/RJ.
O ÓRGÃO ESPECIAL DO TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DO RIO DE JANEIRO, no exercício das funções legais e regimentais, tendo em vista o decidido na sessão de 24 de agosto de 2015, (Processo nº 2015-102814);
CONSIDERANDO a necessidade de garantir o acesso à Justiça reconhecido pela Declaração Universal dos Direitos Humanos, que prevê que todo ser humano tem direito a receber dos tribunais nacionais competentes remédio efetivo para os atos que violem os direitos fundamentais que lhe sejam reconhecidos pela constituição ou pela lei;
CONSIDERANDO que o Estado Brasileiro submete-se à jurisdição da Corte Interamericana de Direitos Humanos, cujos precedentes exigem a apresentação imediata da pessoa presa à autoridade judicial;
CONSIDERANDO que o Brasil, no ano de 1992, ratificou a Convenção Americana sobre Direitos Humanos (Pacto San Jose da Costa Rica) que, em seu art. 7º, item 5, dispõe que “toda pessoa detida ou retida deve ser conduzida, sem demora, à presença de um juiz ou outra autoridade autorizada pela lei a exercer funções judiciais”;
CONSIDERANDO que o relatório do Grupo de Trabalho sobre Detenção Arbitrária da Organização das Nações Unidas – ONU e o diagnóstico do sistema prisional apresentado pelo Conselho Nacional de Justiça -CNJ, ambos publicados no ano de 2014, revelam o contingente desproporcional de pessoas presas provisoriamente no país;
RESOLVE:
Art. 1º – Fica criado, no âmbito da justiça comum de primeira instância do Estado do Rio de Janeiro, o sistema das audiências de custódia.
Parágrafo único – As audiências de que trata o caput serão realizadas em Centrais de Audiência de Custódia – CEAC’s, que serão instaladas nas dependências do Tribunal de Justiça.
Art. 2º – Toda pessoa presa em flagrante delito será apresentada, sem demora, ao juiz competente, a fim de realizar-se audiência de custódia.
Parágrafo único – Por decisão judicial, devidamente fundamentada, será dispensada a apresentação do preso quando forem reconhecidas circunstâncias pessoais que a inviabilizem.
Art. 3º – A Central de Audiência de Custódia, ao receber o Auto de Prisão em Flagrante, deverá providenciar o registro, a autuação e juntada de Folha de Antecedentes Criminais e histórico penal do preso, para exame imediato do Juiz.
Art. 4° – O preso, antes da audiência de custódia, terá contato prévio e por tempo razoável com seu advogado ou, na falta deste, com defensor público e será encaminhado imediatamente para exame pericial em local próprio nas dependências do Fórum.
Art. 5º – Elaborado o exame pericial, o preso será encaminhado ao Juiz para a audiência de custódia, exclusivamente destinada à apreciação da legalidade da prisão em flagrante, da sua conversão em prisão preventiva ou da concessão de liberdade provisória, com ou sem a imposição de medidas cautelares.
Art.6º – Aberta a audiência, o preso será ouvido a respeito das circunstâncias da prisão e suas condições pessoais, manifestando-se, em seguida, o MP e defesa, se presentes ao ato.
Parágrafo único – As declarações do preso colhidas, preferencialmente, por meio digital, serão lacradas e mantidas em separado.
Art. 7º – Da audiência será lavrado o respectivo termo, que conterá, apenas, o resumo da manifestação do MP, da defesa e o inteiro teor da decisão proferida pelo juiz.
Art. 8º – O juiz, diante das informações colhidas na audiência, encaminhará o liberado, se for o caso, à equipe multidisciplinar, visando seu atendimento e eventual inclusão na rede de assistência social, em projeto social conveniado ou do próprio Tribunal.
Art. 9º – Caberá ao Presidente do Tribunal de Justiça designar os Juízes de Direito que atuarão na Central de Audiência de Custódia, com ou sem afastamento das suas funções, recaindo a escolha, preferencialmente, dentre os que preencham os seguintes requisitos:
I – Juízes Titulares ou Regionais com competência criminal, há pelo menos 6 (seis) meses, excluindo-se os de competência de Execuções Penais e Juizado Especial Criminal;
II – Juízes que tenham participação regular em curso de capacitação específico ministrado pela EMERJ, que terá validade de 1 (um) ano.
§ 1º – O Tribunal de Justiça publicará edital de seleção dos Juízes que atuarão nas CEAC’s, indicando o número de vagas, conforme a necessidade de cada Comarca.
§ 2º – A designação de que trata o caput terá a duração de 4 (quatro) meses, podendo haver a recondução, a critério da Presidência.
§ 3º Poderá ser designado, também pelo Presidente do Tribunal, um Juiz Coordenador da CEAC, a quem competirá a gestão da serventia.
Art. 10 – Caso não ocorra o afastamento do Juiz das suas funções como Titular ou Regional, à atividade descrita nesta Resolução, inclusive a do respectivo Juiz Coordenador, corresponderá o disposto no “caput” do art. 31 da Lei 5535/2009.
Parágrafo único – Observadas as condições do “caput”, e havendo redução da demanda, a Presidência poderá aplicar o parágrafo único do art. 31 da Lei 5535/2009.
Art. 11 – Caberá à Corregedoria-Geral da Justiça designar os servidores que atuarão nas Centrais de Audiência de Custódia.
Art. 12 – O Presidente do Tribunal de Justiça poderá instalar as Centrais de Audiência de Custódia por transformação de outras serventias não instaladas ou extintas.
Parágrafo único – Fica criada a CEAC – Comarca da Capital por transformação da Central de Inventariante, Depositário e Liquidante, código 2029029, da Comarca de Nova Friburgo.
Art. 13 – O local de instalação, horário de funcionamento e outras questões operacionais relacionadas às CEAC´s serão regulamentadas por Ato Normativo da Presidência do Tribunal de Justiça.
Art. 14 – Este ato entra em vigor na data de sua publicação.
Rio de Janeiro, 24 de agosto de 2015.
(a) Desembargador LUIZ FERNANDO RIBEIRO DE CARVALHO
Presidente do Tribunal de Justiça
DJE, 26/08/2015
1 AULETE, Caldas. Dicionário Contemporâneo da Língua Portuguesa. Rio de Janeiro: Delta, 1958, v. II, p. 1273; FREIRE, Laudelino. Grande e Novíssimo Dicionário da Língua Portuguesa. Rio de Janeiro: A noite, 1941, v. II, p. 1683.
2 Miguel Ángel Encinar del Pozo, La doctrina del Tribunal Europeo de Derechos Humanos sobre el derecho a la liberdad, in Derecho Penal Europeo. Jurisprudencia del TEDH. Sistemas Penales Europeos. Madrid: Consejo General del Poder Judicial, Estudios de Derecho Judicial, n. 155-2009, 2010, p. 184-185.
Gustavo Henrique Righi Ivahy Badaró é advogado criminalista, mestre, doutor e livre-docente em Direito Processual Penal pela USP. Professor Associado de Direito Processual Penal da USP.
Fonte: ConJur