Notícias | 06 de setembro de 2011 15:25

Arquivamentos serão investigados

A Corregedoria Geral do Ministério Público do Rio de Janeiro vai analisar se houve erros nos pedidos de arquivamento de casos de homicídio no estado. A medida, anunciada ontem pelo procurador-geral de Justiça, Cláudio Lopes, poderá resultar na abertura de procedimentos administrativos disciplinares contra os promotores responsáveis.

Em reportagem publicada domingo, O GLOBO mostrou que o MP fluminense arquivou, em apenas quatro meses, 6.447 inquéritos de homicídios abertos até 2007. Esse montante representa 96% dos casos analisados pelos promotores, de abril a julho, para cumprir a Meta 2, determinação do Conselho Nacional do Ministério Público (CNMP) para concluir até dezembro todos os inquéritos antigos. Na pressa de cumprir a meta, alguns promotores encerraram investigações que nem sequer haviam começado, cometeram erros claros ou ignoraram provas, optando pelo arquivamento.

Do acervo de investigações antigas analisadas até julho, o MF fluminense ofereceu denúncia em apenas 3% dos casos. — Infelizmente, essa é a realidade. Para os promotores, não há muito o que fazer em investigações que começaram mal. Passados tantos anos, é quase impossível chegar aos responsáveis. A tendência é o arquivamento — admitiu Lopes. O procurador-geral da República, Roberto Gurgel, defendeu ontem que o MP-RJ apure supostos abusos no arquivamento em massa. Para ele, é inacreditável que promotores tenham sugerido o fim das investigações mesmo sem ler peças importantes do inquérito:

— Se alguém incorreu em desvio de conduta, os mecanismos de controle atuarão, sem dúvida. A depender do resultado da apuração da Corregedoria do MP fluminense, o caso poderá ser levado ao Conselho Nacional do Ministério Público (CNMP), presidido por Gurgel. Porém, mesmo antes da conclusão da investigação no Rio, ele disse que o conselho buscará informações sobre os arquivamentos. — É um índice de arquivamento que, de fato, chama a atenção. Mas temos que obter informações junto ao Ministério Público do Rio para ver o que ocorreu — alegou.

Tia de vítima pagou passagem de policial

Como o Estado do Rio ainda tem 40 mil investigações de homicídios em aberto, a maior taxa do Brasil, a opção pelo arquivamento deverá crescer nos próximos meses, para frustração de pessoas como a aposentada Celeste Barros Monteiro, que perdeu o sobrinho, o advogado Márcio Antônio de Carvalho, morto a tiros em Botafogo, em agosto de 1991.

— Fiz de tudo para não deixar impune o que fizeram com meu sobrinho, a ponto de pagar a passagem do policial responsável pelo caso, para que ele fizesse as diligências, mas o caso deu em nada — lamentou. Márcio, aos 25 anos, morreu com dois tiros quando caminhava pela Rua Muniz Barreto em direção ao ponto de ônibus.

Como ele acabava de sair de uma agência bancária, os agentes sustentaram na época que ele fora vítima de um assalto. Mas Celeste nunca acreditou: — Ele era procurador da UFRJ e tinha prestado um depoimento, no dia anterior, a uma comissão de sindicância. Márcio também não aceitava que o alojamento estudantil da universidade fosse assediado por traficantes.

Tudo isso foi desprezado pela polícia. Do total de antigos inquéritos, 25 mil se encontram atualmente no Centro Integrado de Apuração Criminal (Ciac), criado pelo MP fluminense para uma última tentativa de buscar os responsáveis pelos crimes cometidos no Grande Rio até 2007.

Embora a experiência junte promotores e policiais numa inédita parceria, a taxa de denúncias gerada pelo programa é de 1%. Apesar do percentual, o modelo inova ao estabelecer um canal direto entre investigadores, promotores e os órgãos periciais, a começar pelos gestores, o procurador de Justiça Rogério Scantamburlo e o delegado Milton Olivier, que trabalham lado a lado, livres da burocracia.

Ao comentar os arquivamentos em massa, o ministro Marco Aurélio Mello, do Supremo Tribunal Federal (STF), disse não acreditar que promotores tenham cometido crime, mas considera o problema impactante e nocivo para a sociedade. Afirmou que o homicídio é o crime mais grave capitulado no Código Penal e, por isso, não pode ser deixado sem solução antes de uma investigação rigorosa e exaustiva. Para o ministro, as investigações merecem o mesmo rigor, não importando se vítimas são ricas ou pobres.

— O inquérito não pode ter capa. Tem que ter conteúdo. Não se pode levar ao arquivamento só pelo fato de a vítima ser pobre. O Ministério Público atua em nome da sociedade — disse Marco Aurélio.

O presidente do Superior Tribunal de Justiça, Ari Pargendler, disse que não conhece o caso específico dos arquivamentos no Rio, mas ainda assim considera inaceitável o número de assassinatos não esclarecidos. Para o ministro, um país em ascensão como o Brasil não pode conviver com esse tipo de problema:

— É muito grave. Não podemos ter uma democracia onde o ordenamento jurídico não é respeitado. E a vida é o bem maior.

Em Minas, veredicto de culpado não dá cadeia

Quando desconfiou que sua ex-mulher estava tendo um caso com o porteiro do Hospital das Clínicas da Universidade Federal de Minas Gerais, onde o filho era levado para consultas pediátricas, o motorista Raimundo Loredo dos Santos não pensou duas vezes: contratou duas pessoas e, com elas, planejou a morte do rapaz. Renato dos Reis Moreira chegou a conhecer o marido da moça, mas dizia não se preocupar com seus sinais de agressividade porque não tinha nada além de uma boa amizade com ela.

Quando largou o expediente, numa tarde de fevereiro de 1996, levou um tiro na nuca ao se aproximar do ponto de ônibus. Segundo os médicos, sobreviveu por pura sorte. Não foi difícil para a polícia chegar à autoria do crime. Decidiu-se que Raimundo seria submetido a júri popular quatro anos depois. Os advogados recorreram; o júri confirmou a condenação; um novo recurso protelou a sentença definitiva, e o processo ficou esquecido nas escrivaninhas da Justiça mineira.

A sentença final saiu apenas em 2010: finalmente Raimundo poderia ser preso, condenado a três anos e quatro meses de prisão, por ser o mandante do crime.

Processo de 14 anos é arquivado no dia da condenação do réu

Mas, no mesmo dia em que se decidiu por sua prisão, o processo foi arquivado. Isso porque se passaram mais de oito anos entre o fato e a condenação. Nesses casos, penas de até quatro anos de prisão são prescritas. O processo virou pó.

O mesmo ocorreu com o processo contra Sebastião Alves Miranda, o Caxangá, que tinha 29 anos quando deu tiros na barriga e na perna do comerciante Marcelo Costa Barreiro, então com 41 anos. Dono de um bar, Barreiro tinha chamado a polícia porque Caxangá ameaçava a clientela com uma faca que levava na cintura.

Quando teve sua arma apreendida pelos militares, o rapaz prometeu vingança contra o dono do bar. E cumpriu. De acordo com a polícia, Barreiro só não morreu porque se escondeu atrás de uma mesa de ferro. Caxangá nunca apareceu para depor. A Justiça mineira decretou sua prisão. Passaram-se quase 20 anos, ele nunca foi procurado. Foi sentenciado a júri popular, mesmo sem comparecer ao Fórum, mas isso não fez qualquer diferença. Sem resposta da polícia ou da Justiça, o Ministério Público sugeriu a extinção da punibilidade do réu. A Justiça aceitou o pedido. Caxangá está livre para fazer o que bem entender. Nunca foi preso, nem respondeu ou responderá pelo crime que cometeu.

— Pedimos arquivamento de processos muito antigos para desafogar o Tribunal do Júri, não tem jeito. Mas não tem decisão precipitada, são casos em que já há um lapso temporal entre o fato e a audiência, casos em que faltam provas, ou até mesmo em que o réu já morreu — argumenta o promotor do II Tribunal do Juri de Belo Horizonte, Francisco Santiago.

Em BH, o trâmite médio de um processo criminal é de três anos

De fato, estudo da pesquisadora Klarissa Almeida Silva, a partir de uma amostragem de 245 denúncias de homicídio ocorridas entre 2003 e 2005 na capital mineira, mostra que nove entre dez réus que foram a júri popular até quatro anos depois foram condenados. Em 2009, um terço já estava inclusive cumprindo pena.

Para a especialista, o índice de Belo Horizonte é satisfatório se comparado a cidades como o Rio, São Paulo e Recife, onde outros pesquisadores constataram percentuais de condenação inferiores a 15% no júri. De acordo com o levantamento da pesquisadora, o trâmite médio de um processo criminal, entre a ocorrência do fato e a primeira condenação, é de cerca de de três anos em Belo Horizonte.

Os resultados não são muito diferentes dos registrados no início da década pela equipe de Eduardo Batitucci, pesquisador da Fundação João Pinheiro, que registrou uma média de dois anos e meio de duração do fluxo criminal no início dos anos 2000, em Belo Horizonte e Ipatinga. Segundo o Conselho Nacional de Justiça (CNJ), de abril a julho deste ano, o Ministério Público mineiro analisou 1.154 processos de homicídio. Na maioria, houve pedidos de novas diligências policiais (826). No período, foram 140 pedidos de arquivamento e 188 denúncias apresentadas.

Fonte: O Globo