*O Globo
Jacira da Conceição Fonseca viveu 51 anos sem qualquer documento de identidade. Moradora do Jacarezinho, bairro da Zona Norte do Rio, com uma infância em extrema vulnerabilidade, a diarista sequer teve registro de nascimento oficializado. As dificuldades só aumentaram na vida adulta. Sem conseguir provar sua existência, não registrou a filha, Vanessa Vitória da Conceição Fonseca, hoje com 27 anos. A história se repetiu com a terceira geração: Suellen, filha de Vanessa, nasceu há quatro anos e saiu do Hospital Miguel Coutro, na Gávea, sem o registro.
As três embarcaram num ônibus para sair da invisibilidade. A família conseguiu, enfim, tirar a certidão de nascimento no Justiça Itinerante do Sub-Registro, projeto do Tribunal de Justiça do Rio, que estava “estacionado” na Praça Onze.
— Agora nós existimos para a sociedade. Sem documentos, não somos nada, tem lugares que não conseguimos entrar, não podemos estudar e nem trabalhar. Já perdemos até cestas básicas por isso — conta Jacira.
Sem acesso a benefícios que exigem a apresentação de documentos oficiais, Jacira conta que tudo que conseguiu na vida foi pelo “boca a boca”. Para ter acesso à saúde, apresentava o cartão de vacinação da filha. Ela trabalha desde os 12 anos, quando foi retirada das ruas por uma família que lhe ofereceu emprego de babá em troca de comida e teto. Com 18 anos, saiu da casa e foi morar com o pai de Vanessa, mas fugiu por sofrer violência doméstica. Criou as crianças sozinha e “com Deus”. Além de Vanessa, Jacira teve outra filha, que fugiu aos 17 anos e conseguiu ser registrada em um abrigo, e um filho, criado por outra família.
Agora, com a certidão de nascimento, Jacira tem esperança de transformar a vida. E uma lista de projetos.
— Vou correr atrás dos meus benefícios, tirar a carteira de trabalho. Sempre sonhei trabalhar de carteira assinada e nunca consegui. Quero fazer cursos para aprender novas coisas, porque eu sempre fui esforçada, mas nunca tive oportunidade de me desenvolver — disse, emocionada.
A filha, Vanessa, planeja dar entrada no Bolsa Família assim que possível.
— Antes, nós não existíamos, então agora vamos atrás de tudo que nunca tivemos. Acho que vai ajudar muito a minha família — conta Vanessa, que também está planejando colocar a filha Suellen na creche.
O caso das três chegou até a Secretaria municipal de Assistência Social após um forte temporal, quando a casa da Jacira foi inundada, e ela perdeu todos os seus bens. Sem conseguir sequer receber doações pela falta de documento, a secretaria e a Defensoria Pública ajudaram a providenciar a papelada.
Apesar de não ter identidade, Jacira não era desconhecida do Estado. Em 2004, ela foi presa e, ainda assim, saiu da cadeia sem qualquer tipo de documento quase cinco anos depois. A Secretaria de Administração Penitenciária informou que, desde 2020, o Detran faz a identificação dos custodiados, mas não explicou como era antes. Em 2016, ela conseguiu iniciar um processo para retirar o registro tardio, porém se mudou e, por não ser localizada, a ação acabou sendo arquivada. De acordo com o Tribunal de Justiça (TJ-RJ), 580 ações para registro tardio tramitam na instituição.
— Desde 2015, toda maternidade que tenha mais de cem partos por mês precisa ter uma unidade do cartório para fazer o registro civil — explica o juiz do TJ-RJ Sandro Pitthan Espíndola.
De acordo com dados mais recentes do IBGE, 3.765 crianças nasceram no Estado do Rio e não foram registradas de janeiro de 2020 a março de 2021. Já a Defensoria Pública do Rio informou que só este ano atendeu a 104 pedidos para fazer o registro tardio.
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