As limitações das agências reguladoras no que diz respeito ao direito do consumidor e à ineficiência do serviço atendimento ao cliente das empresas (SACs) fazem com que a Justiça se tome uma das principais arenas para a resolução de conflitos na relação de consumo. Dos 90 milhões de processos na Justiça — quase um para cada dois brasileiros —, cerca de 40 milhões têm as instituições financeiras e o setor de telefonia como autor ou réu. E esta avalanche de processos consumeristas não se limita aos Juizados Especiais Cíveis (JECs) ou aos tribunais de primeira instância. Muitos vão parar no Supremo Tribunal Federal (STF), arrastando ações simples por anos, numa verdadeira guerra de recursos liderados por grandes empresas.
A pedido do GLOBO, a FGV Direito-Rio, por meio do projeto permanente Supremo em Números, compilou dados relativos ao direito do consumidor na mais alta corte do país, com base em informações disponíveis no site do próprio STF. De 2002 a 2012, houve um salto de 940% na representatividade dessa área na corte, passando de 1,44% das ações recebidas para 14,77%. No ano passado, o STF recebeu 11.879 ações de consumo, um número 933% maior que em 2002, quando 1.149 estavam relacionadas a essa temática.
De acordo com a FGV de 1988 a junho de 2013, 81.522 processos de direito do consumidor chegaram ao STF. Destes, 57.090 tinham as relações de consumo como o ceme da questão. Seis dos dez temas mais frequentes são relacionados à telefonia ou ao sistema bancário.
Em média, os processos de consumidores que chegam ao STF levam 161 dias para serem julgados nesta instância. Muitas destas ações começam nos Juizados Especiais Cíveis (JECs), onde, segundo o estudo “Síntese de Dados do Diagnóstico sobre os Juizados Especiais Cíveis” do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea), a tramitação, no Rio, chega a 316 dias.
Ivar Hartmann, coordenador do projeto Supremo em Números, diz que em menos de 4% dos processos de direito do consumidor nos quais o STF tomou alguma providência houve mudança (total ou parcial) da decisão, indicando que não faz sentido esses processos subirem:
— A minha impressão é que a empresa leva a ação à frente para postergar um passivo. São questões repetitivas. As empresas sabem que vão perder.
Com a reforma do Judiciário, que entrou em vigor em 2007, dois critérios passaram a ser avaliados para que o STF aceite uma ação: a questão deve ser relevante nacionalmente ou inédita. Isso, no entanto, não parece estar sendo aplicado.
— Em 2002, o STF recebeu 130 mil processos. Agora, a corte recebe 70 mil e dá prosseguimento a 30 mil. Mas não há 30 mil novas questões por ano. A rigor o STF deveria deixar entrar cem recursos por ano — afirma Hartmann.
Se, por um lado, o acesso à Justiça é positivo e característico do Estado de direito, por outro, a judicialização excessiva indica falta interlocução entre os órgãos de defesa do consumidor e as agências reguladoras, diz Ricardo Morishita, da FGV:
— Assusta saber que as ações de direito do consumidor que mais cresceram em números no STF são de áreas reguladas.
Para Morishita, a transformação do direito do consumidor em política de Estado — por meio do Plano Nacional de Defesa do Consumidor — é importante na estruturação das regras, para que cláusulas de proteção, atendimento e qualidade estejam, por exemplo, nos contratos de concessão.
Especializado em direito do consumidor, o advogado Vinicius Zwarg considera que já há mecanismos disponíveis, mas pouco utilizados, que poderiam favorecer a redução da judicialização, como ações coletivas, que permitem que uma sentença valha para todos os atingidos por um dano. Para o professor Paulo Roberto Roque, mestre em direito privado, não há como proteger só via Justiça:
— As sanções administrativas, aplicadas pelos Procons, é que têm que ser efetivas para que as empresas se reestruturem para cumprir o CDC.
CONCILIAÇÃO PODE AGILIZAR SOLUÇÃO DE PROBLEMAS
Estudo do Ipea indica que, no Rio de Janeiro, as relações consumeristas aparecem em 92,89% das ações nos JECs. Destas, 32,29% referem-se ao sistema financeiro, 24,36% ao varejo, 20,96% a telecomunicações; e 10,48% a energia elétrica. Para o juiz José Guilherme Vasi Werner, ex-conselheiro do Conselho Nacional de Justiça (CNJ), os JECs do Rio tomaram-se tribunais de consumidores. Apenas no do Centro chegam 2 mil processos novos por mês: A ideia era que essas ações fossem resolvidas nos juizados. Mas as empresas descobriram o caminho do Superior Tribunal de Justiça e do STF, conseguindo até paralisar milhares de ações sobre um tema. A provisão para gastos judiciais é bem menor do que o investimento em pós-venda.
Para Vasi Werner, um caminho para mudar o cenário é a mediação e a conciliação. Na última terça-feira, o ministro da Justiça, José Eduardo Cardozo, entregou ao presidente do Senado, Renan Calheiros (PMDB), proposta de marco regulatòrio da mediação, para inaugurar a cultura jurídica do consenso. Afinal, destaca Flávio Crocce Caetano, secretário da Reforma do Judiciário do Ministério da Justiça, um processo leva em média dez anos. Na mediação, o prazo cai para três meses:
— Já há iniciativas bem-sucedidas no Rio e em São Paulo. Propomos uma Justiça de solução.
Em dezembro de 2011, foi inaugurado o Projeto Conciliação Pré-Processual, no Centro Permanente de Conciliação dos JECs do município do Rio, com o objetivo de reduzir o número de ações de consumidores contra fornecedores e prestadores de serviços. Mesmo “engatinhando” segundo o juiz Flávio Citro, coordenador do Centro Permanente, a iniciativa soluciona 80% dos casos:
— É tudo mais prático e rápido. Vemos que muitas pessoas recorrem à Justiça por desconhecimento, antes mesmo de terem recorrido à empresa.
Carlos Thadeu de Oliveira, gerente técnico do Instituto Brasileiro de Defesa do Consumidor (Idec), destaca que dos cerca de dois milhões de atendimentos registrados anualmente no Sistema Nacional de Defesa do Consumidor, que reúne registros dos Procons, 10% viram reclamações fundamentadas. Dessas, 30% não são resolvidas.
— As empresas têm práticas reativas. E o brasileiro, quando se trata de direito, é um litigante.
Renan Ferraciolli, assessor-chefe do Procon-SP, destaca que muitos dos casos que chegam ao Judiciário e aos órgãos de defesa do consumidor poderiam ter sido solucionados pelos fornecedores.
— E a tendência é que o número de queixas aumente de forma astronômica. Há um déficit na educação para o consumo, e há mais espaços para as pessoas reclamarem, como pela internet.
Fonte: O Globo