CNJ | 24 de outubro de 2016 11:49

‘A Justiça Além dos Autos’: Louco de Pedra

pedrada

Juiz de Direito Cássio Ortega de Andrade

Ribeirão Preto / SP

De quando eu era menino, bem menino, estranhava-me ouvir dizer que alguém era “louco de pedra”. Perguntava para minha mãe, única referência confiável em assunto desses, por que louco de pedra. Ela me respondia, sempre com o mesmo jeito e paciência, sorriso obrigatório no rosto: “filho, de tão louca, a pessoa atira pedras nos outros que passam na rua”. Assustado eu ficava com a imagem, fantasiando essa sandice tão acentuada, num ceticismo inconvincente e perturbador: “Se existisse mesmo louco assim, guardasse-me Deus!”

Passaram-se os anos, vi-me Juiz Substituto. Com o perdão do clichê, vida de Juiz Substituto não é fácil. Digo-o com autorizada autoridade, pois foram quatro anos vividos entre “auxílios na sede” e “tapa buracos”, lá e nas cercanias. Tempo bom, de muito amadurecimento profissional e pessoal, vivendo a prática da judicatura e conhecendo modelos de colegas e de situações. Amplo repertório, um plexo que me forjou Juiz, tal como hoje sou.

Foi numa dessas andanças, auxiliando na sede, que me deparei com um famoso exemplar do “louco de pedra” – quase o senti, em verdade. Era um novembro azul, daqueles bem quentes. Um dia muito seco, semanas que não chovia. Incomum na comarca, conhecida por seu clima ameno.

Veio o titular da vara em que eu auxiliava naquela semana e perguntou-me: “Você já fez interrogatório em procedimento de interdição, na casa do próprio incapaz? Acho uma inutilidade, a questão é pericial, mas a lei manda fazer… Você faria para mim? Será uma experiência bacana!”

Lá fui eu, quase entusiasmado, no horário combinado. Esperavam- -me o motorista da Kombi do Fórum, Sr. Pedro, um senhorzinho beirando os setenta anos, bigodinho anos 20 e brilhantina no cabelo. Boa prosa de tudo – fiquei sabendo que faleceu. Também o escrevente de sala, um sujeito corpulento, que conseguia levar uma máquina de escrever como capanga de couro, debaixo do sovaco, mas de uma discrição e polidez admiráveis. Montamos no carro, o escrevente no banco da frente, ao lado do motorista, eu na fileira imediatamente anterior, suando em bicas, sem coragem, ainda, de pôr o paletó de lado.

A casa do interditando era longínqua, distante mesmo do prédio do fórum. Íamos por uma avenida que, em certo ponto, tornava-se contramão. Começou aí o festival de inusitados fatos: vendo que o motorista não tencionava convergir à direita, como o obrigava a sinalização, de modo a não entrar na contramão, o escrevente o lembrou: “Seu Pedro, aqui é contramão!” Resposta imediata: “É só um trechinho, né, Doutor?”, disse-o Seu Pedro, dirigindo-se a mim, como que pedindo um alvará, para excepcionar a legislação de trânsito.

Ri por dentro, mas o adverti: “Não, Seu Pedro, não faça isso não!” Não deu tempo: ele fez numa rapidez própria de quem está fazendo algo errado e, como o trecho era mesmo pequeno, felizmente não houve consequências. Contudo, eu não poderia deixar de ralhar com ele. Falei para que não fizesse mais isso, que ele poderia causar um acidente, ser punido por isso, até mesmo perder o emprego… Mal sabia eu o que estava por vir.

Chegamos à casa do interditando. Casinha simples, de fundo. Fomos logo recepcionados por uma senhora de metro e meio, que se identificou como sua mãe. Imediatamente atrás, um sujeito sui generis, inesquecível: um metro e noventa, uns 130 quilos, vestia bermuda de brim e camiseta regata colorida, chinelos Rider nos pés. Cabelos encaracolados, que não disfarçavam um raminho de arruda atrás de uma das orelhas. Olhava-nos desconfiado, aparentemente calmo, pelo menos, enquanto sua mãe lhe falava insistentemente, como um mantra, que éramos “amigos do fórum”.

Comecei a desconfiar de que o equilíbrio do ambiente fosse extremamente frágil e delicado. Fiz uma meia dúzia de perguntas rápidas, que ele me respondeu de forma desconexa, como era de se esperar. A mãe, tadinha, ria e falava: “Ah, ele é doente da cabeça, uma criança, não sabe de nada mesmo”.

O escrevente me olhava desconfiado e, quase cúmplice, clamava em silêncio para que terminássemos logo os trabalhos. Interrogatório transcrito na Olivetti portátil, despedimo-nos da senhora, acenamos para o interditando e nos encaminhamos por um corredor de uns 30 metros, que dava acesso à rua. Os passos eram inconscientemente acelerados, mas não demoraram a adquirir ritmo de velocista, quando ouvimos um verdadeiro tropé às nossas costas e os gritos da senhorinha: “Não, fulano, não faz isso não… é o Juiz!”.

Foi isso: o “louco de pedra” estava com pedaços de tijolo baiano nas mãos e aparentava extremada prática em arremessá-los. Eu, no meu terninho de Juiz Substituto, pus-me a correr de verdade, o escrevente grandalhão atrás de mim, levando a máquina de escrever, como lhe era possível, e Seu Pedro, meio que claudicando, tão rápido quanto lhe permitia sua idade.

A Kombi parecia estar mais longe do que quando chegamos! O tempo todo do trajeto de fuga ouvíamos cacos de tijolo sendo espatifados no chão, até entrarmos na perua, que então passou a ser o alvo do apedrejamento. “Toca, Seu Pedro, toca!”, foi o que gritei, esbravejando de um jeito que não me era comum.

A viatura partiu, o mais rápido que pôde. Enfim, saímos da zona de alvo do apedrejador. Estávamos muito ofegantes, mas ainda havia fôlego para o riso coletivo incontido. Havia eu conhecido, finalmente e de visu, um autêntico “louco de pedra”!