“Da nossa vida, em meio da jornada, Achei-me numa selva tenebrosa, Tendo perdido a verdadeira estrada. Dizer qual era é cousa tão penosa, Desta brava espessura a asperidade, Que a memória a relembra inda cuidosa.” Dante Alighieri, A Divina Comédia, Inferno, Canto I.
Juíza de Direito Flávia de Almeida Viveiros de Castro – Rio de Janeiro (RJ)
Já se vão muitos anos em que, Juíza de Vara de Órfãos, do Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro, tinha, como uma de minhas tarefas judicantes, de visitar as instituições públicas e privadas psiquiátricas, para realizar as chamadas audiências de impressão pessoal em processos de interdição.
Havia pessoas que não podiam sequer vir ao fórum, para serem interrogadas pelo Juízo, ou que não tinham condições de fazê-lo, por se encontrarem há longo tempo internadas. Assim sendo, dirigia-me ao local onde se encontrava o interditando, para aferir de sua capacidade intelectual e psíquica, que depois seria apurada pelo rigor de um médico especialista. Certa vez, fomos eu, minha secretária e o motorista que nos conduzia até determinada clínica, que me traz à memória os versos da citação na Divina Comédia, que abrem este texto. O psiquiatra, perito do Juízo, ao saber que iríamos à clínica, alertou-nos que lá estivera e ficara sem dormir por três noites seguidas. Não esmorecemos, afinal, não se pode interditar uma pessoa, retirando desta o exercício dos direitos civis, sem ter a certeza que a solução legalmente preconizada ser-lhe-ia mais adequada.
Foi realmente muito impactante, desde o início da visita e, mais ainda, ao final. Eram salas enormes com muitos leitos simples, colocados lado a lado, onde estavam pessoas, cerca de 50, geralmente jovens, evidentemente entorpecidas por alguma medicação, olhando para o teto, sem nada expressar. Muitos sequer jamais poderiam andar, pois os membros estavam totalmente atrofiados. Os pés, pela falta de uso, não eram mais pés. As mãos, não eram mais mãos, dobradas sobre si, não mais se abriam, tinham perdido suas funções.
Na sala dos homens, onde estava o nosso jovem interditando, poucos falavam, e os que sabiam dizer alguma coisa só murmuravam. A vida era aquilo: um catre, um teto, um olhar perdido no nada.
Perguntei sobre as famílias. A resposta foi que poucos recebiam visitas, pois as famílias eram muito pobres, do interior do Estado, e não tinham condições de se deslocar. O cotidiano se resumia ao que ali se apresentava, sem carinhos, sem afetos, sem atenção especial, já que eram muitos a cuidar e poucos funcionários presentes.
O mais impactante, contudo, ocorreria ao fi nal da visita, quanto estávamos saindo. Havia um grupo de internos que possuía mobilidade. Aparentavam ter problemas mentais, não falavam direito, apenas ruídos, mas conseguiam andar e se locomover sozinhos. De repente, um deles – cerca de 22 anos, penso eu – aproximou-se, murmurou alguma coisa ininteligível e apontou para minha bolsa. Eu não entendi e aguardei. A enfermeira que nos acompanhava disse: “ele quer carregar sua bolsa até a saída”. Entreguei a bolsa a ele, e continuamos a caminhar até a porta de saída do estabelecimento.
Quando chegamos à porta, pedi ao jovem a bolsa. Ele não me entregou e começou um ruído – que fi cava entre um grunhido e um lamento – apontando para o chão, para os meus pés, repetida e insistentemente, A JUSTIÇA ALÉM DOS AUTOS | 151 intensifi cando o barulho que fazia, já que não conseguia falar. Perguntei à enfermeira o que ele queria, e ela me respondeu: “ele quer agora os seus sapatos!”
A revelação daquele momento foi como se eu tivesse levado uma descarga elétrica. Aquele ser humano, que não conseguia falar, que estava entorpecido de remédios, que mal conseguia andar, queria minha bolsa e calçado, para sair daquele lugar! Queria sua liberdade de volta! Entendia que o lado de fora do portão representava a esperança de algo melhor e insistia nisso! A liberdade não era um conceito de direito constitucional. Era sua salvação como ser humano.
Voltamos em silêncio, para o Tribunal, lembrando do aviso do perito: “você não conseguirá dormir depois que for lá”. De fato, o impacto foi grande, mas consegui dormir.
O lampejo de consciência daquele jovem interno me fez repensar fatos do cotidiano e valorizar ainda mais o exercício profissional em prol dos que tem fome e sede de Justiça. É bom lembrar que o caso relatado ocorreu antes da chamada Lei da Reforma Psiquiátrica (Lei 10.216/01), que veio em boa hora.