CNJ | 18 de outubro de 2016 12:17

‘A Justiça Além dos Autos’: A Justiça que não Queremos

estupro

Juiz de Direito Marcos Augusto Ramos Peixoto

37.ª Vara Criminal da Capital – Rio de Janeiro / RJ

O exercício da judicatura coloca o magistrado em contato com momentos trágicos da condição e da miséria humana, mas também com momentos de rara beleza. Um fato, singelo e belo, que jamais esquecerei, ocorreu em um processo criminal de estupro, quando eu era Juiz da Vara Criminal de Nova Friburgo. Em meio a uma audiência extremamente tensa e no momento da oitiva da vítima, que chorava copiosamente, a defesa se pronunciou:

– Gostaria que V. Ex.ª perguntasse à ofendida se ela sentiu prazer e alcançou o orgasmo no momento do fato.

Indeferi a pergunta, ao que o ilustre advogado requereu que fi casse consignado o indeferimento. Ditei: “que foi indeferida a seguinte pergunta, posto que absolutamente desnecessária, desrespeitosa e deselegante. O indeferimento foi consignado. A audiência prosseguiu, e, em alegações finais (ou mesmo posteriormente, na via recursal), a defesa não impugnou o indeferimento da questão. O réu foi condenado. A sentença foi mantida pelo Tribunal.

Cerca de um ano depois, com a sentença já transitada em julgado e o condenado cumprindo sua pena, saía de meu gabinete, em Nova Friburgo, quando a vítima apareceu à minha frente, dentro do fórum, perguntando se eu me lembrava dela. Respondi que sim, e ela, então, indagou:

– O senhor permite que eu lhe dê um abraço?

Antes que eu pudesse articular alguma resposta (nem sei qual seria), ela se aproximou e me abraçou, colocando a cabeça em meu peito, o que durou, no máximo, cinco segundos. Depois, chorando muito, disse-me: “muito obrigado” e partiu. Nunca mais a vi.

A princípio, acreditei que ela me agradecia por ter condenado o acusado – mas não. Hoje, creio que o agradecimento se deve a tê-la tratado com humanidade e sensibilidade, em um contexto tão dramático como o depoimento judicial de uma vítima de estupro.

Poderia ser dito que fiz estritamente o que era exigível para a situação. Também concordo, porém, antes de me tornar Juiz, advoguei por sete anos e estagiei ainda antes disso por outros três. Tenho, ao todo, vinte e um anos de dedicação à prática do direito e sei que as coisas nem sempre ocorrem assim. Isto porque são mais comuns do que gostaríamos as práticas de uma justiça que não queremos.

Não falo dos problemas de grande porte que acometem o Poder Judiciário: acúmulo de trabalho; vendas de sentenças e de acórdãos; magistrados que consagram mais tempo a transitar por gabinetes, visitando desembargadores, que a sentenciar e trabalhar adequadamente; Juízes que têm a judicatura como um “bico”, tal a profusão de cursos e de aulas a que se dedicam; desembargadores que acreditam integrar alguma espécie de dinastia e insistem em empregar parentes sem concurso público; falta de regras claras e objetivas para aferição de merecimento; convocações para substituição em segundo grau e para turmas recursais sem critério; edição de atos normativos inconstitucionais em desrespeito ao princípio do Juiz natural.

Não… Falo de problemas mais comezinhos – porém não menos relevantes. Falo de exercer a função de julgar com sensibilidade. Não queremos Juízes inquisidores, que destratam os cidadãos na condição de réus em processos criminais, desconsiderando a presunção constitucional de inocência e o direito à não autoincriminação, colhendo interrogatórios como se estivessem já na frente de culpados (aliás, como se os próprios culpados merecessem aquele tratamento). Não almejamos Juízes insensíveis, que desconsideram a situação peculiar da vítima, o sofrimento, a humilhação, a dor por que passaram, o pavor que sentem de se encontrarem novamente a poucos metros de seu algoz, e colhem suas informações com descaso, descuido ou desrespeito.

Tampouco desejamos magistrados que tratam testemunhas e partes sem qualquer paciência, como se estivessem tomando seu precioso tempo, exigindo que falem rápido e pouco (de preferência, nada), para que possam alcançar metas absurdas de produtividade impostas por uma visão privatista do Judiciário – colocando-o no mesmo nível que uma empresa de “fast food”. Nem cobiçamos desembargadores que dispensam a Juízes um tratamento, ao mesmo tempo, arrogante e displicente – deixando a seguinte dúvida: se tratam assim a colegas de profissão, como tratarão partes e advogados?

Não ansiamos por julgadores que não se apercebam da nobreza de seu mister e, sobretudo, que, atrás de cada processo, há, ao menos, uma vida, uma esperança, um tormento, um sofrimento – sim, aquela montanha de papéis merece atenção e dedicação. Do mesmo modo que não intentamos a magistrados alheios à sociedade que os cerca, aos anseios e às vicissitudes dos cidadãos que, em última análise, arcam com seus salários.

Não optamos por um Judiciário que se entenda como um “club privé”, uma sociedade autossuficiente e indiferente, não se apercebendo, a cada momento, que existe para servir ao povo e não a si mesma – enfim, uma justiça desumana, fria, de olhos e ouvidos vendados ao sofrimento de quem a procura, por vezes, como última alternativa.

Assim, é insuficiente discutir a justiça que queremos, pois temos de atentar – para nunca perder de vista e passar despercebida – à justiça que não queremos.