O jornal “Correio”, da Bahia, publicou o artigo “A primeira noite de um menino órfão”. De autoria do desembargador Wagner Cinelli, do Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro, o texto retrata as consequências do feminicídio na família da vítima.
Wagner Cinelli é autor do livro “Sobre ela: uma história de violência”, publicado pela Editora Gryphus. O magistrado também falará sobre a violência contra a mulher em live nesta quarta-feira (17), às 19h, no canal da deputada estadual Martha Rocha (PDT) no YouTube.
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Confira abaixo a íntegra do artigo do desembargador, divulgado em 6 de março:
A primeira noite de um menino órfão
Queria começar este texto citando um feminicídio trágico, adjetivo aqui usado apenas para causar redundância, pois não existe feminicídio que não encerre desastre. Aliás, a verdade é que usualmente não encerra, pois é apenas um capítulo de uma tragédia que continua, especialmente para a família e os amigos da vítima, mesmo com o remédio paliativo do tempo.
Poderia extrair o caso fatal das páginas de um jornal, de um processo criminal, da literatura ou das artes. Poderia ser recente ou antigo, do Brasil ou de qualquer outro país. O manancial é um Rio Amazonas. Escolhi Menino de Engenho, romance de estreia de José Lins do Rego, lançado em 1932, cujo primeiro capítulo é inaugurado com o assassinato da mulher, mãe de Carlinhos, pelo marido.
No entanto, transcrever o trecho que relata o crime contra a vida dela seria o passo mais óbvio. Seguir outro, então. “Na hora de dormir foi que senti de verdade a ausência de minha mãe. A casa vazia e o quarto dela fechado. Um soldado ficara tomando conta de tudo. As criadas de perto queriam vir conversar por ali. O soldado não consentia. Botaram-me para dormir sozinho. E o sono demorou a chegar. Fechava os olhos, mas me faltava qualquer coisa. Por minha cabeça passavam, às pressas e truncados, os sucessos do dia. Então comecei a chorar baixinho para os travesseiros, um choro abafado, de quem tivesse medo de chorar.”
Tira-se o foco do assassinato, já consumado, para a primeira noite de orfandade do menino Carlinhos, com seus tenros quatro anos de vida. Como ele nos conta, foi na hora de dormir que sentiu a ausência da mãe, sobrando-lhe interagir sua tristeza contida com os travesseiros.
O desafio do menino órfão, entretanto, não se resume a sobreviver àquela primeira noite, primeiro dia do resto de sua vida. Seu desafio é sobreviver à ausência da mãe, ao trauma, ao pai preso ou foragido, enfim, ao resto de sua existência. Letras e vida se refletem. A história do romance não é a primeira a retratar o assassinato da mulher pelo homem e que, de saldo ainda mais perverso, deixa órfãos os filhos da vítima. Se houver filho comum, em um só instante perde a mãe para a morte e o pai para a prisão. Se for menor de idade, geralmente sua guarda passará a algum avô ou outro parente. Muitas vezes, seu destino é ser institucionalizado ou pode até cair na escola da vida.
A perda de Carlinhos é tristíssima. Mais tristes ainda são perdas em que o marido carrasco faz dos filhos testemunhas de seu ato cruel. Infelizmente, estamos diante de outro manancial. Além do sentimento de desperdício que qualquer homicídio simboliza, o assassinato da mulher pelo homem é acompanhado de um elemento pesaroso, que é a traição a um passado de afeto. É a morte trazida por quem deveria proteger e, quando ocorre na frente dos filhos, a traição e os traumas são exponencializados.
Mas, com ou sem exponencial, todo trauma traz a primeira noite e com ela seus vazios e suas dores.
Durma, Carlinhos, com os anjos. Sobreviva a todas as noites e nos ajude a compreender que a morte infligida não pode ser a história de nenhuma família.