Juiz de Direito Eduardo Buzzinari Ribeiro de Sá
Três Rios / RJ
Logo que ela entrou pela sala de audiências, pensei comigo: essa é uma menina especial. Era linda a garota. De pele morena, cabelos longos e cacheados e um par de olhos verdes, tão grandes e luminosos, que nem mesmo a analogia às esmeraldas se fazia justa para descrevê- -los. Devia ter uns 6 ou 7 anos e entrou pela sala, de mãos dadas a um casal de meia-idade.
Enquanto o Oficial de Justiça certificava a presença das testemunhas, conferi rapidamente a capa dos autos, para me inteirar do motivo que trazia aquelas pessoas à minha presença. O processo era de adoção, e o resto, a própria figura das partes já falava por si mesma. Dispensava até a leitura dos arrazoados.
Certamente, aquela pequena criança havia sido abandonada pela mãe, por questões financeiras. O pai talvez fosse ignorado. O casal de adotantes, a julgar pela idade, provavelmente já havia esgotado todos os métodos conceptivos tradicionais e desistira das clínicas de fertilização após se encantar com a menina. Fossem um pouco mais velhos, eu diria que resolveram preencher o vazio deixado pela saída dos filhos.
Esse tipo de processo segue um padrão: uma breve leitura do estudo psicossocial, confirmou quase todas as minhas especulações. De fato, o casal de adotantes possuía problemas de fertilidade e o pai era desconhecido, mas a menina não fora abandonada. Ao menos, não por vontade de sua mãe biológica. A pobre mulher, que trabalhava como empregada doméstica, havia morrido num acidente de carro, e a menina, então com dois anos, passara aos cuidados dos empregadores, ora adotantes na epígrafe dos autos.
O estudo esclarecia que a criança se encontrava inteiramente adaptada ao ambiente familiar em questão e apontava a ansiedade da menina em ser legalmente reconhecida como filha do casal. Concluía, por fim, favoravelmente ao acolhimento do pedido. Na verdade, essa é uma modalidade irregular de adoção, na medida em que o casal se subtrai ao dever de prestar avaliações prévias de aptidão e de entrar na fila de espera por uma criança, mas, diante de uma situação de fato já consolidada, o Juiz nada tem a fazer, senão homologar de direito a vontade das partes. Com muito mais razão, num caso como aquele, em que o vínculo afetivo se revelava solidamente estabelecido entre a menina e o casal.
De qualquer sorte, a audiência de adoção é sempre uma audiência mais leve, mais amena, que transcorre sem maiores embaraços ou discussões. É um dos raros momentos da vida forense em que não há um litígio declarado, com dois advogados se estapeando pela vitória e o Juiz, no meio, tentando apartar a briga. Num caso de adoção, em geral, todos os interesses convergem para o bem da criança, por isso, o clima de paz e cordialidade.
Nessa atmosfera de perfeita harmonia, fui ouvindo as testemunhas, uma a uma, e foi possível perceber claramente a notável dedicação dispensada pelos adotantes à pequenina. Encerrada a oitiva, tudo pronto para a sentença que reconheceria formalmente o vínculo da adoção, e eis que a menina me faz um pedido inusitado. A mocinha, que passara toda a audiência no mais absoluto silêncio, prestando atenção em cada detalhe que acontecia, levantou o dedinho para cima e pediu a palavra.
– Tio, posso lhe dar um beijo? – indagou, sentada à cabeceira da mesa. Em seguida, deu a volta correndo pela sala e pregou os lábios na minha bochecha, num beijo estalado e inocente.
Eu tinha razão. Aquela era mesmo uma menina especial.