Juiz de Direito Eduardo Buzzinari Ribeiro de Sá
Três Rios / RJ
O Oficial de Justiça tinha acabado de anunciar o processo que seria submetido a julgamento naquele horário: A Justiça Pública vs Feliciano dos Santos.
Tão logo o réu adentrou o recinto, escoltado pelos policiais que faziam a guarda do fórum, o magistrado percebeu que aquele seria um confronto desigual. De um lado, o Ministério Público, dignamente representado pela Promotora de Justiça responsável pela acusação, uma profissional de reconhecido valor, notável saber jurídico e condecorada com os títulos e homenagens inerentes ao cargo. De outro, o acusado, metido no uniforme desbotado do sistema prisional e exibindo um par de algemas de prata cintilante nos pulsos.
A leitura dos autos logo confirmou a suspeita inicial do Juiz: tráfico de entorpecentes. Inobstante o raro brilhantismo do advogado de defesa, seria quase impossível se obter uma sentença favorável ao réu naquelas condições. Até porque o julgamento não costuma ser complexo em processos dessa natureza, e uma quantidade razoável da substância tóxica, apreendida em poder do acusado, geralmente é prova sufi ciente para a condenação. A bem da verdade, a defesa limita-se, quase que absolutamente, à duas teses possíveis: negar a propriedade da droga ou assumi-la sob a justificativa do uso exclusivo.
Nenhuma das duas variáveis, contudo, socorreria ao réu na hipótese. Negar a propriedade de entorpecente encontrado em seu próprio veículo era argumento que não convenceria nenhum julgador. Dizer que era para uso próprio a quantidade de droga bastante para fazer tribunal e plateia delirarem por semanas inteiras de insanidade afigurar-se-ia risível. A sentença condenatória era inevitável.
Enquanto a Promotora inquiria as testemunhas arroladas, o Juiz folheava o processo à procura da folha de antecedentes do réu – já procedendo ao cálculo mental da pena a ser aplicada. Pendurado ao centro da parede, exatamente atrás de sua cabeça, um crucifixo de metal retratava a imagem de Cristo, que parecia acompanhar a leitura dos autos por detrás dos ombros do magistrado. Eis o documento: o prisioneiro era reincidente.
Foi quando a acusação se deu por satisfeita, e o Juiz passou ao interrogatório do réu. Ele parecia pouco à vontade em ser tratado como Feliciano – talvez estivesse mais habituado à alcunha de “meio-quilo”, constante da denúncia – mas se manteve resoluto em negar até o fi m a autoria do crime.
Encerrada a instrução, veio um pedido singular da defesa: o advogado insistia em que se permitisse a entrada da esposa do réu para cinco minutos de conversa. Esclareceu que ela trazia consigo a filha do casal, nascida há dois meses, para que o pai a conhecesse.
O Juiz hesitou por um instante. Ele sabia que a Corregedoria acabara de editar um ato normativo, desaconselhando esse tipo de conduta, mas sabia também das dificuldades enfrentadas para a visita de presos na unidade penitenciária: os deslocamentos, as filas, os horários restritos, a documentação exigida para o cadastro da família… Lembrou-se, então, da própria filha recém-nascida que, àquela hora, devia estar em casa, sob os cuidados da mãe. Sopesou os argumentos e as implicações legais e, por fi m, a balança pendeu para o lado humanitário.
– Mande entrar a esposa e a filha – ordenou o magistrado ao Oficial de Justiça.
Não demorou muito, a mulher cruzou a porta, trazendo, no colo, uma linda bebezinha que dormia serenamente. Com o desvelo de uma mãe carinhosa, a esposa desenlaçou cuidadosamente a manta que envolvia a criança e a apresentou ao pai.
O acusado suspendeu as mãos, ainda preso às algemas, e, sob o olhar atento dos policiais, tocou o rostinho da filha com a ponta dos dedos. Uma lágrima transbordou a linha d’água e deslizou pela sua face, no exato momento em que a menina abriu os olhinhos, como que reconhecendo a figura paterna.
Antes de deixar a sala de audiências, o prisioneiro ergueu lentamente a cabeça e olhou para o magistrado em sinal de gratidão. Os olhos marejados se acenderam numa faísca de luminosidade, e um leve sorriso se esboçou em seus lábios. Não era um sorriso comum, era daquele que ainda tinha fé na justiça. O Juiz o fitou de volta e retribuiu a cortesia com a mesma gentileza. Também não era um sorriso qualquer, era daquele que ainda tinha fé nos homens.