Desembargador Saraiva Sobrinho
Corregedor-geral de Justiça do Rio Grande do Norte
A missão de um Juiz, quando à frente de uma comarca do interior, assume miríades de papéis. Ora atua como padre, ora Prefeito, ora tabelião ou, ainda, psicólogo, assistente social, conselheiro, entre outras tantas.
Dentre as atividades do Juiz, protagonista de nossa história, a de promover casamentos em cerimônias coletivas era a que mais o atraia, talvez, pela religiosidade, forte em sua formação, ou pela crença no amor, como forma de promoção dos valores humanos e na família, como célula da sociedade. Também lhe coube, muitas vezes, a missão de salvar uniões, para além do mister oficial. Foi assim, naquele caso quando dirigia o Foro da Comarca.
A cidade onde ocorreram os fatos, ora narrados, acha-se encravada na região típica do sertão nordestino. Um microcosmo com vida própria, ainda que limitado pela pobreza econômica e cultural. Em sua maioria, uma gente simples de costumes pouco lapidados. Os homens, de baixa estatura e franzinos, incondicionalmente com as camisas fechadas apenas a partir do terceiro botão, deixando, à mostra, o peito somente desenvolvido à força de puxar enxada na roça. Parecia que se davam o prazer daquela demonstração machista, como numa rinha humana, em que desnudar o peito pudesse desafiar o rival e até – por que não? – conquistar as mulheres.
Foi um desses típicos matutos que o Juiz vislumbrou na sala de espera do fórum, naquela manhã ensolarada de verão brabo, que esturrica a terra e parece acender as paredes do casario, ao refl etir a luz do Sol. Olhou de soslaio e já ia direto para seu gabinete, mergulhar nos estudos de “Deus sabe quantos” processos, quando o tal sujeito, entre tímido e decidido, levantou-se e foi até ele, perguntando:
– O sinhô é o Doutô Juiz, num é?
– Sim, posso ajudar? – respondeu o magistrado.
Já, por aí, começara a envolver-se ao perguntar se podia ajudar – postura realmente sincera, vinda do magistrado em questão.
– Eu pricisu de tê um particulá com vossência, será pussívi?
O Juiz fez sinal, para que o cidadão lhe acompanhasse até o gabinete, e lhe apontou um assento, enquanto abancava seus papéis e pertences. Notava-se, pela postura acanhada, que havia algo perturbando o visitante. Sondou, mais uma vez, aquilatando o que teria a tratar e sentou-se disposto a ouvir, em parte motivado pela curiosidade.
– Pois não! O que se passa?
– Dotuô, eu tenho que assuntar um assunto, meio chato de falá, mas o sinhô tem que me ajudá, ou num sei o que vou fazê!
Empertigou-se na cadeira, antevendo alguma situação de difícil conciliação, talvez, uma rixa antiga prestes a se converter em homicídio.
– Sou todo ouvidos – reforçou – , pode falar, para que eu entenda a situação.
– Dotuô, é sobre minha mulé! Ela num quer mais coisar cumigo. Já tem argum tempo qui eu percuro pur ela, mas a tinhosa manda eu mi aquietá e se isconde, vai prus canto, e nada, Doutô! Sabe cuma é, né? Nada! Já penso inté que tem arguma coisa istranha nisso, dotuô ,e num respondo pur mim se discubro argum marfeito dela.
Opa! Já se via a situação difícil em que fora colocado. Tudo indicava que o problema desaguaria em crime passional, com prejuízo para todos. Antevendo tal quadro, cabia-lhe agir preventivamente. Tal missão, nenhum currículo acadêmico relata, apregoa ou avisa. Tem que ser fora da lide! Foi o Juiz, às pressas, buscar de inspiração Divina.
Uma coisa que não percebera de imediato, mas que, aos poucos, predominou fortemente, foi o odor nada agradável que aquele homem exalava. O suor azedado pelo calor típico da região impregnava o ar a ponto de torná-lo irrespirável. Nesse particular, funcionou também um importante componente investigatório: a intuição.
O magistrado pensou que não seria nada agradável uma aproxima- ção além da que mantinham, durante aquela entrevista. Imagine, então, “coisar” com o tal sujeito! Assim, partiu para o papel de conselheiro e psicólogo, procurando falar numa linguagem próxima do seu interlocutor, antecipando algumas recomendações básicas de higiene corporal e arquitetando seu plano de ajuntamento dos dois, caso seu discernimento – quiçá – estivesse certo.
– Vou convocar sua mulher, para vir até aqui conversar comigo – informou o Juiz. Procure ficar tranquilo, enquanto busco conhecer os motivos dela. Havemos de achar uma saída – prometeu. Mas, vou precisar da sua ajuda para vencermos, juntos, esta situação, até porque tenho certeza de que não está acontecendo nada do que o senhor imagina – disse o Juiz, já fundamentado em sua capacidade premonitória.
– O senhor vai fazer a sua parte: enquanto eu converso com ela, organize as coisas para criar um clima, entende? Sabe como é mulher, não é? Gostam de perfume, de um cheirinho. Sei que homem é diferente, mas, com certeza, se o senhor tomar um banho prá fi car cheiroso, ela vai entender o recado… Se não tiver sabonete, até um pedaço de sabão serve. Pode ser ali mesmo no rio, se o senhor se banhar, ao chegar em casa ela vai notar a diferença… Pegue um perfume ou desodorante. Na falta, use limão para tirar o “cheirinho” de baixo do braço, mas cuidado: não esfregue diretamente, porque pode assar o sovaco: esprema o suco e vá passando, com um algodão ou um paninho. Faça isso que, por aqui, eu converso com ela e faço a minha parte.
O homem matutou um pouco e acatou a ideia: – É mesmo, né Doutô? Mulhé gosta dessas coisa, né? Despediram-se, e ele ficou observando a fi gura se mover, já na rua, chicoteado pelo Sol que, naquela hora ardia vingativo. Não encontrou na jurisprudência, sondando os escaninhos da memória, os fundamentos da obrigação de “coisar”. Até porque, observando a figura que se retirava, ficou pensando consigo mesmo, que a mulher teria sua razão para a negativa.
Passou ao chefe de secretaria o endereço que havia colhido do “reclamante”, para que sua consorte (com sorte?) fosse convidada a vir até o fórum, para uma conversar. No dia seguinte, foi anunciada a presença da mulher, que o magistrado fez adentrar a sala, de imediato. Meio desconfi ada, cabisbaixa, de estatura apoucada, tal qual o marido, mas limpinha, bem cuidada, apesar de não portar adereços ou mesmo maquiagem. Gente simples.
Juiz começou, como se diz nos interiores, “comendo papa pelas beiradas” – coisa típica de mineirinho. Perguntou sobre a vida, sua origem, os fi lhos, a família e, por fi m, sobre o marido. A mulher foi, aos poucos, respondendo e se adaptando ao ambiente e à situação. Chegou, então, a hora da abordagem, e o magistrado foi direto ao assunto.
– Conheci seu marido ontem! Ele veio aqui me visitar, e fi quei preocupado com a situação de vocês. Ele me informou… assim… quero dizer… bem, ele está bem chateado porque, segundo me disse, a senhora não quer mais “coisar” com ele… a senhora entende, não é? O que está havendo?
– Ah! Seu Juiz, eu devia imaginar que ele ia falar sobre isso. Não tenho nada contra ele nem está acontecendo nada de errado. O caso é que ele nunca gostou muito de tomar banho, é verdade, mas agora está demais… Ele parou de todo… O homem está fedendo de não se aguentar, o senhor pode até não ter notado, mas, quando o cabra começa a suar, não tem cristão no mundo que aguente.
Bingo! Em um depoimento rápido e eficaz, toda a verdade revelada. Assiste razão à pobre mulher que, agora, passa da condição de interrogada para a de suplicante – concluiu o magistrado em sua verve jurídica.
– Já que o senhor tomou conta do caso, Doutô, me ajude e veja se dá um jeito nesse homem, senão não tem acordo. Se entrara na briga, iria até o fi m e tentaria salvar aquela união… Ainda que nem tão unida assim! Para complementar a articulação de seu plano, tinha agora que predispor a mulher a um encontro com o marido, agora limpinho.
Anunciou a promessa que o marido fizera, de tomar um banho. Lembrou que ela teria de fazer também a sua parte, até para demonstrar aprovação. Começou recomendando à mulher que desse ao marido alguns “sinais”. Sugeriu que ela, ao sair do Tribunal, fosse até a farmácia do Didi, do outro lado da rua, e comprasse um sabonete para lhe dar de presente.
Aconselhou que matasse uma galinha para um jantar especial. Tudo à guisa de um clima romântico. A mulher concordou, mesmo duvidando da transformação do marido, mas comprometeu-se a fazer sua parte e retirou-se.
O magistrado acompanho-a com os olhos até vê-la dirigir-se à farmácia do Didi. Voltou aos seus afazeres normais, aos tantos processos merecendo análise, além daquele caso que, ao final, imaginou que estaria solucionado.
Ficou, no entanto, curioso para saber o verdadeiro desfecho, saber se o plano teria dado certo, apesar de ter como certo que, passados quinze dias, sem que as partes retornassem, significava que a situação fora resolvida.
A resposta definitiva veio depois de algum tempo, quando lá estava o Juiz, novamente, em uma cerimônia de casamento coletivo. Dirigia-se aos casais, inspirado nas palavras de recomendações, de amor, de respeito, de fidelidade e de compromisso familiar, doravante assumidos pelos nubentes. Observava os casais, pousando os olhos em cada um, para dirigir-se diretamente a eles…
De repente, lá entre os convidados, seu olhar encontrou um rosto conhecido: era ele, o marido fedegoso, que se esticou, para sobressair da multidão, e acenou todo satisfeito, tentando demonstrar intimidade de quem conhecia o magistrado.
No meio da cerimônia, não havia condições de falar, mas o sorriso estampando os dentes de tanto contentamento bastaria, para comunicar o feliz desfecho. Se não bastasse, veio o sinal de positivo, com o polegar para o alto, num gesto de agradecimento, complementando a certeza do sucesso:
– Deu certo, viu?
O magistrado meneou a cabeça, sem interromper a exortação aos demais, porém a cerimônia ganhou, para ele, outro significado. Era a resposta que queria. Tinha sim dado certo!
Segue o ritual, com todos felizes: o Juiz, pela intervenção extrajudicial, naquela família; eles, “coisando” satisfeitos e (quem sabe?) agora cheirosos.
Missão cumprida!