CNJ | 17 de outubro de 2016 13:07

‘A Justiça além dos Autos’: O Menino e o Necrotério

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Juiz de Direito Afif Jorge Simões Neto
Santa Maria / RS

No antanho bem distante, não havia ainda as capelas mortuárias, hoje tão comuns em qualquer cidadezinha do interior. As pessoas morriam discretamente, como diria o poeta Aparício Silva Rillo, e eram veladas em casa, com farta distribuição de rosquinhas, de cachaça e de café no ponto, e um bêbado chato – quando não um time – em volta do corpo, tecendo loas ao finado. Alguns velórios aconteciam na Câmara de Vereadores, caso a pessoa fosse figura importante.

Outros ex-viventes, na condição nem sempre cômoda de defunto, empeçavam o descanso adeternum da ossamenta entre os círios, em pequenos necrotérios conjugados aos hospitais. Eram, no geral, peças de alvenaria pequena, formato de igrejinha da campanha, com uma mesa de concreto ao centro e bancos de madeira dos dois lados.

Tramitava pelo Foro de São Sepé – o Juiz da época era o falecido desembargador Elias Elmyr Manssour – um caso enrolado de homicídio, praticado à emboscada, quando o magistrado entendeu, por bem, de ouvir um garoto de uns dez anos, de dentadura alvíssima enfiada na negra carinha matreira, o qual poderia prestar algumas informações de interesse para o deslinde da causa.

Antes de iniciar a inquirição, o Juiz advertiu a testemunha, com certa insistência e olhar de brabo, que ela teria que falar a verdade, somente a verdade, que não poderia mentir, sob pena de responder a processo e, o que seria pior, de acabar passando uns dias na cadeia. Claro que o Dr. Manssour não iria cometer a tropelia de prender o miúdo na chamada “mão grande”, contrariando os mais comezinhos princípios constitucionais.

O que ele queria era induzir a criança a não esconder o que sabia sobre o fato, até porque a autoria do assassinato permanecia indefinida, e o morto a bala era figura de certo destaque na sociedade local. O denunciado sustentava um álibi que permanecia uma rocha diante da prova até então coletada.

O magistrado ficou impressionado com a inocência e vivacidade do menino e, mesmo findo o depoimento, prolongou um pouco a conversa com ele, pretendendo arrancar-lhe algumas indicações a respeito de sua vida.

– Onde é que tu moras? – perguntou-lhe o Juiz.

– Moro pros lados do presídio.

– Tu já trabalhas?

– Engraxo sapatos na rodoviária, pois o seu Dali Rosa, e um irmão dele, o seu Paulo, são bem meus amigos e me deixam ficar lá.

– E a que horas voltas para casa?

– Quase sempre volto de noite e tenho que passar pelo necrotério, pois fica no cruzo.

– E não tens medo de passar pelo necrotério, à noite?

– No início, até que tinha. Agora perdi o medo. Estou acostumado. Nem dou mais bola!

A conversa durou mais um tempo, até que o garoto foi liberado e se sentou a próxima testemunha para depor. Quando o Juiz já estava absorvido com a nova oitiva, ele voltou, entrou sem bater na sala das audiências e disse, meio choramingando, que queria falar com o Juiz.

– O que é que te aconteceu? – perguntou-lhe este -, ao que o menino respondeu:

– Doutor, eu voltei pra dizer que estava mentindo pra o senhor. Eu fico louco de medo, quando passo pelo necrotério.