* O Globo
Uma cicatriz de bala no ombro direito, exibida durante uma audiência realizada segunda-feira na 1ª Vara da Infância, da Juventude e do Idoso da Comarca da Capital, é, até o momento, a prova mais contundente apresentada por um jovem somali de 16 anos para justificar seu ingresso com um falso passaporte italiano no Brasil. Ele contou que precisou sair às pressas da Somália após levar um tiro e correr risco de morte ao recusar-se a ser recrutado pela al-Qaeda. Ele temia ter o mesmo destino de um irmão, morto em 2015, aos 12 anos, por também dizer “não” ao grupo terrorista.
O jovem, conforme informou o colunista Ancelmo Gois, do GLOBO, desembarcou sexta-feira no Aeroporto Internacional Tom Jobim, vindo de Madri, e apresentou-se espontaneamente no posto da Polícia Federal, onde pediu para permanecer no Brasil na condição de refugiado. Após receber um documento provisório de estrangeiro, foi encaminhado ao juiz Pedro Henrique Alves, titular da 1ª Vara, que decidiu abrigá-lo na casa de uma família acolhedora do projeto da Secretaria municipal de Desenvolvimento Social.
— Fizemos uma audiência rápida. Como não temos maiores dados, eu quis, primeiramente, garantir a integridade do menino, colocá-lo em segurança numa família acolhedora. Também determinei como medida protetiva que ele tenha aulas de português, seja matriculado no ensino regular e entre em um programa de capacitação profissional — explicou o magistrado.
O relato do adolescente surpreendeu os presentes à audiência. Ele garantiu que integra uma lista de pessoas marcadas para morrer na Somália porque preferiu continuar estudando a virar terrorista e matar pessoas. O jovem disse ainda que sofreu um atentado um mês após a recusa, com um tiro disparado a cinco metros de distância. A decisão de deixar o país, segundo ele, foi tomada pela mãe, que temia perder mais um de seus sete filhos vivos.
Ele explicou que, em seu país, é fácil conseguir um passaporte falso: basta pagar. A princípio, a mãe pretendia levá-lo para a Alemanha, mas não conseguiu os US$ 20 mil exigidos pelos exploradores do esquema, chamados de coiotes. A viagem até o Brasil, segundo ele, custou à família US$ 15 mil, valor que incluiu o passaporte falso da Itália, expedido em nome de um adulto, e uma rota de fuga que começou em Mogadíscio, na Somália, passou pelo Egito (não citou a cidade), por Lisboa e Madri até chegar ao Rio.
Durante depoimento, contou que a mãe cultiva kath, uma planta considerada alucinógena e proibida para consumo na Europa, mas liberada em países africanos. “As pessoas bebem a erva ou mastigam”, explicou no depoimento. Ele disse que, por conta da produção, a mãe passou a ser hostilizada pela al-Qaeda.
O jovem afirmou que, desde a partida da Somália, foi acompanhado por um tunisiano. No Rio, esse homem teria pedido seu passaporte falso e desaparecido em seguida, logo após dizer que iria ao banheiro. Ao ver a lista de passageiros do voo, com fotos, o rapaz disse que não conseguiu identificar o tunisiano. Na bagagem do rapaz, a PF encontrou 400 euros, além de roupas e um celular. O rapaz forneceu o telefone da mãe e garantiu que ela mandará dinheiro sempre que precisar. Disse que estudava na Somália no “nível 10”, mas que nunca teve documentos de identidade além da certidão de nascimento.
O adolescente, que fala árabe, inglês e o dialeto de sua terra, afirmou que pretende garantir a vinda ao Brasil de toda a família. Ele explicou que preferia ter ficado na Espanha, mas o tunisiano escolheu o Rio por achar que, com a Olimpíada, seria mais fácil ingressar no país. Também revelou que gosta de jogar futebol e que era considerado um dos melhores do esporte em sua escola.
No despacho, o juiz Pedro Henrique Alves determinou que seja iniciado, no órgão federal responsável, o processo oficial de refúgio, para que o rapaz receba o auxílio necessário.
Fonte: O Globo